Agravado por pandemia, desastre na educação exige mobilização já

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É urgente focar ensino público e combater retrocesso, diz Priscila Cruz

Priscila Cruz, Mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School (EUA), é presidente-executiva e cofundadora do movimento Todos Pela Educação

Folha de São Paula, 16/04/2021

Vivemos um desastre silencioso, a morte lenta de uma geração, que será sentida por décadas. Já passamos de um ano de escolas fechadas em razão do descontrole da pandemia, provocado, principalmente, pelo desprezo do atual governo federal. A estimativa mais recente, da FGV (Fundação Getulio Vargas), é de um retrocesso de quatro anos na aprendizagem, mas tenho convicção de que é muito mais que isso.

Acrescento ao cenário a explosão da evasão, a insuficiência alimentar, os impactos perversos no desenvolvimento cognitivo, físico, emocional e social das crianças e dos jovens em idade escolar.

Para aprofundar o fosso, temos um Ministério da Educação liderado por oportunistas de visão curta, acuados pela própria incompetência, que cometem absurdos que levarão anos ou décadas para serem corrigidos: intervenção ideológica em livros didáticos, enfraquecimento das políticas de expansão da educação integral e de implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apoio ao “homeschooling”, militarização da educação e perseguição a professores. E o mais grave de tudo: a completa omissão no enfrentamento dos efeitos da pandemia na educação básica.

Devemos agir e corrigir estruturalmente os rumos da educação e lançar os alicerces de um projeto para o Brasil que tenha como base a escola pública. Essa base será reforçada por dois pilares muito sólidos: a capacidade da educação de unir os democratas deste país e a clareza que há hoje em relação aos caminhos que devemos percorrer para chegarmos à necessária educação de qualidade para todos.

A educação une porque não compete com nenhuma outra área. Pelo contrário, fortalece cada uma delas: educação pela ciência/ciência pela educação; educação pelo meio ambiente/meio ambiente pela educação; educação pela economia/economia pela educação; educação pela justiça/justiça pela educação —e muitas outras.

O conhecimento do que precisa ser feito nos próximos cinco, dez, 15 anos para assegurar uma educação de qualidade, democrática, antirracista, acolhedora e integral se baseia na evidência consolidada das experiências exitosas efetuadas tanto no Brasil como em outros países. Basicamente, está nos campos da primeira infância; ampliação da educação integral; contínuo aprimoramento curricular e de implementação da BNCC; desenvolvimento profissional docente (atratividade, formação, carreira e condições de trabalho); gestão das escolas e das redes de escola; distribuição mais justa dos recursos educacionais (avançaremos muito com o novo Fundeb); colaboração entre estados e municípios para a alfabetização na idade certa; modernização do ensino médio e expansão da educação profissionalizante; ampliação do uso da tecnologia para fortalecer o trabalho dos professores e da gestão; e governança federativa mais alinhada aos propósitos de qualidade e de equidade educacional.

Esses dois pilares juntos —o engajamento de todos e o compromisso de seguirmos as evidências— constituem a saída para um país próspero para todos e construído pelas e para as pessoas.

Há, portanto, um imperativo moral e estratégico de reconstrução e renovação da educação brasileira. Para isso, precisamos reverter a profunda descrença que temos a respeito de investir nas pessoas e abraçar a ideia de que nós, todos nós, vamos reconstruir este país, superando as consequências brutais da pandemia e da passagem do governo federal mais incompetente da nossa história.

Nenhuma instituição, por melhores que sejam seu desenho e seus propósitos, será capaz de enfrentar esses imensos desafios sem as pessoas. As instituições, públicas ou privadas, não são autômatos; elas são essencialmente constituídas pelas suas pessoas —que formulam, gerem, implementam, corrigem rumos, fazem ciência, ensinam, cuidam, constroem, empreendem, defendem direitos, plantam e colhem, criam.

Observo, entretanto, debates sobre combate à corrupção, retomada do crescimento, prevenção de doenças, proteção do meio ambiente, preservação e fortalecimento da democracia, promoção de maior equidade e justiça social, entre outros, sem que se dê centralidade à necessária solidez na formação das pessoas, à educação.

Creio que a dificuldade em dar centralidade à educação, incluindo este período de pandemia, é nosso maior erro histórico, e explica o atraso no nosso desenvolvimento social e econômico. A origem desse equívoco foi estudada pelo professor Renato Colistete, da FEA-USP. Suas pesquisas mostram que a educação era valorizada pela população de baixa renda tanto no Império quanto na República. Há registros abundantes de escravizados, recém-alforriados e trabalhadores demandando escolas para seus filhos.

O que não havia era interesse nem ação de quem comandava o país em provê-las: a instrução formal dos trabalhadores não era considerada necessária, e os filhos da elite é que usufruíam as poucas —embora suficientes para eles— faculdades de medicina e direito que havia no Brasil, ou até mesmo as universidades europeias.

A estrutura econômica, a arquitetura institucional e federativa, os avanços tecnológicos, o consumo e as demandas sociais mudaram radicalmente desde a escravidão, mas a baixa prioridade dada à educação como vetor de transformação do país resiste, como se fosse possível construirmos uma sociedade mais próspera e justa sem que as pessoas tenham os conhecimentos e competências necessários: vivemos numa sociedade do conhecimento sem dar a devida centralidade à escola pública.

Não há a mais remota chance de crescermos, distribuirmos renda, criarmos mais empregos qualificados, combatermos afrontas democráticas, reduzirmos a violência e a intolerância, desenvolvermos ciência, cuidarmos da natureza e de uns aos outros sem priorizar a educação básica pública. Não é por outra razão que o Brasil está nessa espiral de baixo desenvolvimento há séculos, com suspiros esporádicos.

Manteremos o erro de ter apenas uma ínfima parte da população preparada para o século 21? A pandemia e esse governo federal um dia vão passar. Deixarão muita destruição, e precisamos nos preparar para a reconstrução. Os países que optarem pela educação estarão maiores e melhores em alguns anos. Espero que tenhamos a sabedoria de corrigir o maior erro histórico do nosso país.

Convido o campo democrático, que está refletindo sobre como podemos sair deste pântano em que estamos mergulhados, a formular um projeto de nação que rompa de vez com esse passado e tenha a coragem e a generosidade de dar passos firmes na direção da escola pública como eixo de uma estratégia para um futuro maior, mais justo e mais feliz. Lembro aqui Anísio Teixeira, que faleceu há 50 anos. Ele costumava dizer que a máquina que prepara as democracias é a escola pública.

Vamos honrar Anísio. Acima de tudo, vamos honrar o fato de sermos brasileiros. Que a educação de qualidade para todos ainda tenha seu merecido lugar na história —aquela que queremos contar um dia aos nossos filhos, netos e bisnetos.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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