A Terra é redonda, 20/02/2021.
Bolsonaro é expressão de uma variante de semibonapartismo, um reles gendarme da classe dominante, uma espécie de Trump dos grotões.
“Finalmente, a ralé da sociedade burguesa constituiu a sagrada falange da ordem e o herói Crapulinski se instaura nas Tulherias como o “salvador da sociedade”. (Marx, O 18 Brumário).
1.
Bolsonaro apresentou-se, durante a campanha eleitoral de outubro de 2018, como sendo um “radical” crítico do “sistema”, embora seja sua autêntica criação, onde nasceu e proliferou. O mesmo “sistema”, vale dizer, que foi responsável pelo golpe parlamentar em 2016.
Aproveitando-se de uma conjuntura internacional favorável, bem como de contingências internas que muito lhe beneficiaram no período imediatamente anterior às eleições presidenciais, o inesperado acabou por acontecer. A “contarrrevolução preventiva”, para recordar Florestan Fernandes,[1] que estava em curso desde o golpe que levou Temer ao poder, acabou por abrir o caminho para o trágico desfecho nas eleições em 2018.
Como tentar caracterizar, ao menos preliminarmente, o governo Bolsonaro?
Penso que o ex-capitão é expressão de uma variante de semibonapartismo, isto é, trata-se de uma figura política que, não sendo originária diretamente das classes burguesas, as representa fielmente, mesmo que, para tanto, procure assumira aparência de independência e autonomia, ainda que, de fato, seja um reles gendarme da classe dominante.
Os traços pessoais do “líder” são, como muitos tem indicado, claramente neofascistas, oscilando sua ação política entre a preservação de uma raquítica formalidade “democrática”, mas sempre carregando o sonho inabalável de dar o golpe e implantar uma ditadura. Enquanto o bote não pode ser dado, atua como um autocrata da ordem, respaldado na enorme militarização que vem sendo realizada cotidiana e sistematicamente em seu governo.
A fórmula encontrada para estruturá-lo – visto que sua candidatura se mostrou como a única capaz de vencer o PT nas eleições em 2018 – foi combinar a autocracia militarizada com a implantação de uma política econômica ultraneoliberal, predatória, que foi a exigência feita pelo grande capital para que sua candidatura fosse efetivamente apoiada. O empresariado, sabendo do desequilíbrio que tipifica o candidato, temia por algum arroubo nacionalista (de direita), que fora largamente defendido pelo ex-capitão em seu passado parlamentar.
Numa síntese direta: Bolsonaro é uma espécie de Trump dos grotões.[2]
2.
Seus primeiros dois anos se constituíram, como era possível de se prever, na maior tragédia econômica, social e política do país em todo o período republicano. Não há, em nenhum outro momento da história mais do que secular da nossa Republica, nada que se aproxime à devastação tão profunda e tão agudamente destrutiva que estamos presenciando hoje.
O cenário já sinalizava um período muito duro, uma vez que, desde que o início da década de 1970, ingressamos em um longo período de crise estrutural do sistema de metabolismo antissocial do capital, para lembrar István Mészáros,[3] que gerou o ideário e a pragmática neoliberais, sob forte hegemonia financeira. Tendência que se aprofundou significativamente a partir do biênio 2008/9, criando as condições para que se forjasse uma contrarrevolução burguesa de amplitude global, especialmente a partir de eleição de Trump nos EUA.
Foi neste contexto que a nossa classe dominante, abandonando completamente qualquer resquício de apoio formal à institucionalidade “democrática” (que em verdade nunca esteve em seu horizonte, nem político e nem ideológico) assumiu abertamente sua desfaçatez colonial, escravista e quase prussiana, o que lhe permitiu rapidamente pular para a banda (ou o bando) do ex-capitão, ajudando assim a forjar um monstrengo politicamente autocrático, militarizado e ideologicamente primitivo e negacionista, desde que ancorado economicamente na variante mais rudimentar do neoliberalismo, ou seja, aquela que quer reduzir tudo a pó. Não por acaso, uma das tantas inspirações de Paulo Guedes e Bolsonaro, encontramos na política econômica do medonho governo de Pinochet, tão corrosivamente neoliberal quanto indigentemente ditatorial.
O que vivenciamos, então, nesta primeira metade do Governo Bolsonaro pode ser assim resumido: desmonte avassalador da legislação social protetora do trabalho; destruição da política de seguridade social, com a aprovação da Reforma da Previdência Pública – em verdade sua destruição – aprovada no dia 22 de outubro de 2019, na qual os assalariados mais pobres foram excluídos de uma efetiva previdência pública, restando-lhes, no máximo, um assistencialismo vergonhoso e acintoso.
No universo sindical, ampliaram-se as medidas repressivas do governo visando o enfraquecimento dos organismos de classe, além de tolher ainda mais o âmbito de atuação da Justiça do Trabalho, empurrando-a cada vez mais para os “valores do mercado” e para a aceitação das imposições oriundas do “mundo corporativo”, do qual a legalização do ilegal trabalho intermitente é o flagelo mais evidente e aberrante.
Vale dizer que esta proposição já estava estampada no programa eleitoral do ex-capitão e seu fiel escudeiro. A denominada Carteira de Trabalho “Verde e Amarela”, bem o sabemos, tem como leitmotiv implantar o sonho das burguesias predadoras, no qual “o contrato individual prevalecerá sobre a CLT”, derrogando de vez o que resta da legislação do trabalho no Brasil.
No plano da destruição da natureza, também não há paralelo em toda a história recente do país. Tivemos uma liberação recorde de agrotóxicos e defensivos agrícolas que adulteram os alimentos, tornando-se ainda mais prejudiciais à saúde pública. As queimadas e a devastação da Amazônia e Pantanal (dentre tantas outras áreas verdes) agudizaram o traço destrutivo desse governo, para beneficio das burguesias vinculadas ao agronegócio, à extração de minérios, madeira etc.
Economicamente, ainda que suas medidas devastadoramente neoliberais tenham gerado catarse na classe dominante, a eclosão da pandemia fez soçobrar o projeto presente em sua política da caverna.[4] O culto da ignorância, na pior linhagem trumpiana, o desprezo e combate à ciência, à saúde pública, tudo isso acabou por levar o país ao fundo do poço, tanto no plano sanitário, quanto no econômico.
Foi esse quadro catrastrófico que forçou o governo a criar uma renda emergencial, sem a qual a economia entraria em crise depressiva ainda mais profunda, sem falar no temor de que tal situação pudesse deflagrar uma onda de revoltas e rebeliões sociais.
As reformas tributária e administrativa, as novas privatizações (incluindo a Petrobrás, bancos públicos etc.), também estão no tabuleiro negocial deste governo. Se esta é a impulsão que vem do neoliberalismo primitivo de Guedes, vale, então, indagar como agirá o Centrão, frente a essa realidade? Isto porque, todos sabemos, o pântano encontra e agasalha o seu quinhão não só através da barganha negocial parlamentar, mas também através do saque das empresas públicas.
E mais: se a recessão econômica não for estancada e não der sinais de retomada do crescimento, como agirão as distintas frações do grande capital, temerosas de repetir, em 2021, a retração dos ganhos e lucros que imaginaram obter, quando apoiaram e elegeram esse governo? Em 2020, os lucros que pretendiam obter, viram escorrer pelos dedos das mãos, consequência não só da pandemia, mas da trágica condução governamental frente a essa brutal crise sanitária.
Politicamente, já indicamos que Bolsonaro, ora avança em direção à ruptura da institucionalidade jurídico-parlamentar, ora a ela se amolda, pois percebe que o cerco ao seu governo pode levar ao seu fim (arrastando também toda a sua famiglia). É só por isso que o ex-capitão caminha entre estas duas pontes. Sonha com a ruptura institucional e com o golpe ditatorial, mas teme ser fagocitado, se a tacada não der certo. Aqui, vale dizer, tem papel decisivo a postura e ação das Forças Armadas, tema difícil e que se mostra cada vez mais grave, merecendo, por isso, ser tratado em profundidade e por especialistas.
Antevendo os riscos políticos que estava correndo, o defensor da “nova política” e do “fim da corrupção”, em flagrante evidência de estelionato eleitoral, recorreu ao colo do Centrão. Deu-lhe tudo que foi exigido e assim conseguiu arrastar uma instável maioria dos deputados – o conhecido pântano – de modo a tentar se safar do processo de impeachment. Risco, vale dizer, que aumenta cada vez mais, vistos os resultados desastrosos da política genocida do governo em relação à pandemia, cuja letalidade não para de crescer assustadoramente. E, uma vez mais, a maioria do Parlamento brasileiro se curvou às moedas reais, aniquilando de vez o minguado resquício de respeito que talvez ainda pudesse encontrar junto à população, para recordar a cortante crítica de Marx.
Por tudo isso, uma vez mais o desfecho deste quadro agudamente crítico parece nos remeter à anatomia da sociedade civil, uma vez que a crise tende a se exacerbar nesta segunda metade do mandato de Bolsonaro. Mas, atenção, pois aqui não se fala só de economia e nem só de política, mas de algo um pouco mais profundo: a economia política.
3.
Por tudo isso, o cenário que se descortina para o biênio 2021/2 é ainda mais imprevisível. Os níveis de desemprego explodiram e não param de crescer, a tal ponto que a informalidade já não consegue absorver os bolsões de desempregados/as. Um exemplo disso vimos nos dados do IBGE, de maio de 2020, que indicavam a redução dos níveis de informalidade, uma vez que também neste universo o desemprego estava se ampliando. Foi assim que, dentre as tantas “conquistas” deste governo-de-tipo-lumpen (figuração que, creio, não precisa ser explicada) mais um novo personagem da tragédia social brasileira foi criado: o informal-desempregado, adicionando ainda mais brutalidade ao monumental contingente de desempregados/as que ampliam os bolsões de miserabilidade no Brasil. Em 2014, depois de visitar a Índia, escrevi que nosso país caminhava para se tornar uma Índia latino americana. A provocação parece que fazia algum sentido…
Evidencia-se, assim, a decomposição econômica, social e política do governo Bolsonaro. Como consequência, nas classes populares, o apoio obtido em 2018 se retrai expressivamente. Processo similar vem ocorrendo também nas classes médias, que lhe apoiaram majoritariamente até pouco tempo e que parece estar se desmoronando, como resultado da política letal de combate à pandemia, com centenas de milhares de mortos e que repete, em versão muito pior, como vimos em Manaus, a morte por asfixia de milhares de doentes que não encontraram atendimento nos hospitais públicos.
Por certo, o núcleo duro do bolsonarismo, ou seja, aqueles que berram como debiloides trotando em manada, ao que tudo indica seguirá com o seu “Mito” até o fim, mesmo quando ele pratica as ações mais indigentes.
Por tudo que indicamos anteriormente, então, a luta pela deposição do governo Bolsonaro não resultará de uma iniciativa parlamentar, mas somente poderá vir a ocorrer como desdobramento de amplas manifestações populares, capazes de empurrar os deputados a abandonar o barco bolsonarista.
Neste cenário, é possível que presenciemos um movimento dúplice, que poderá se desenvolver tanto “pelo alto”, sob o comando das classes burguesas, quanto “pela base”, isto é, no universo das classes populares.
É possível imaginar, por um lado, que a oposição burguesa possa vir a desencadear um processo de descolamento em relação ao governo autocrático e semibonapartista que elegeu, o que poderá ocorrer se a crise econômica se intensificar e aprofundar ainda mais o quadro recessivo ao longo desta segunda parte do mandato.
Por outro lado, com o arrefecimento da pandemia, uma vez concluída uma etapa expressiva da vacinação, tudo indica que veremos florescer, nas ruas e praças públicas, um crescente movimento popular de repulsa e confrontação, exigindo o impeachment deste (des)governo. Mas é preciso acentuar que esse segundo movimento, de oposição social e popular, não deve ter nenhuma ilusão, nem com a oposição pelo alto e muito menos com o Parlamento. Tanto a primeira, a ação burguesa, quanto a parlamentar, serão tentadas a empurrar a “resolução” da crise para as eleições de 2022, na esperança de fazer a sucessão ao seu modo, sob seu comando e controle.
Já a oposição social e popular terá que se reinventar, evitando especialmente aquele que tem sido (recorrentemente) o seu principal erro social e político, que é o de atuar como cauda da burguesia, para uma vez mais lembrar Florestan Fernandes. Já é hora de se compreender definitivamente que a política de conciliação de classes é, ao mesmo tempo, um grave equívoco político e, mais ainda, uma impossibilidade real, uma vez que as forças econômicas do capital e as forças sociais do trabalho são entificações sociais inconciliáveis. Os governos do PT, ao longo de quase quatro governos, foram a evidência última e maior desta impossibilidade.
Em outras palavras, somente com uma forte confrontação social e política, extraparlamentar em sua centralidade, capaz de aglutinar um leque de forças populares das cidades e dos campos, poderá ser capaz de dar impulsão ao impeachment do governo Bolsonaro e de sua tropa. E esse movimento social e político encontra ancoragem nas lutas e resistências da classe trabalhadora, com seus sindicatos e partidos de classe, que devem decididamente abandonar a prioridade da ação institucional. Do mesmo modo, encontra densidade no vasto e ampliado conjunto dos movimentos sociais das periferias e no movimento negro antirracista. Deve decisivamente incorporar também as rebeliões feministas e LGBTs que lutam contra as múltiplas e persistentes formas de exploração/opressão, dimensões que estão profundamente inter-relacionadas. Last, but not least, encontra suporte nas vitais lutas das comunidades indígenas, no movimento ambientalista anticapitalista, nas revoltas da juventude etc., sem ter nenhuma ilusão com as forças burguesas, cujas portas quando se abrem, é para lhes conferir o papel de subalternidade. Tão logo seus objetivos são atingidos, celeremente as portas se fecham. Vide a deposição de Dilma.
Somente através dessa impulsão social e popular é que a luta pelo impeachment do governo Bolsonaro poderá efetivamente avançar. Se as praças públicas se avolumarem, através da presença multitudinária de amplos contingentes sociais e políticos, só então o Parlamento se verá obrigado a pautar aquilo que vem do clamor popular e assim, finalmente, pautar o impeachment do governo Bolsonaro.
E se esse movimento de deposição, por algum motivo, não se concretizar, ao menos estaremos dando início à criação de uma oposição social e política que poderá efetivamente pensar no que fazer em relação às eleições de 2022.
Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho no IFCH-UNICAMP. Autor, entre outros livros, de O privilégio da servidão (Boitempo).
Notas
[1] FERNANDES, F. (1975). A revolução burguesa no Brasil. São Paulo, Zahar, 1975.
[2] Utilizei esta expressão no livro Politica della caverna: La controrivoluzione di Bolsonaro, Roma, Castelvecchi, 2019.
[3] MÉSZÁROS, I. (2002) Para Além do Capital. São Paulo, Boitempo.
[4] Ver Politica della caverna e também O Privilégio da Servidã, p. 293/302.