Vacinação e esquizofrenia, por Cida Bento.

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As mesmas vozes que condenam a desigualdade pregam as reformas neoliberais perversas

Folha de São Paulo, 21/01/2021

Estamos comemorando o início, ainda que incipiente, da vacinação contra a Covid-19, o que renova a esperança no futuro do nosso país.

Temos acompanhado parte da grande mídia se manifestar reivindicando que as populações mais vulneráveis, como indígenas, quilombolas, moradores das periferias brasileiras e profissionais da saúde, sejam cuidadas.

Essa parcela dos meios de comunicação, nos últimos anos, tem igualmente se manifestado contra a violência que atinge a população pobre, negra, feminina e LGBTQI+.

Mas o cenário é de muita esquizofrenia, já que essa mesma parte da mídia vem defendendo repetidamente o teto de gastos públicos, um dos grandes responsáveis pelo sucateamento do SUS e pelos ataques a todas as políticas públicas para cumprimento dos direitos sociais, bem como as redes de proteção social criadas a partir da Constituição de 1988, que ofereceriam condições para assegurar os direitos dessa população vulnerabilizada.
A redução drástica do orçamento da saúde tem sido sentida pela população com a desmontagem de programas como o Mais Médicos, o Farmácia Popular, a distribuição de medicamentos para pacientes crônicos, entre outros.

Como escreveu a cientista política Sonia Fleury, em 2020, no “Dicionário de Favelas Marielle Franco”, “a crise provocada pela emergência de uma pandemia põe a nu o que todos sabemos: não há direitos de cidadania sem um Estado garantidor, não há direito à saúde sem um sistema público universal e integral, com participação popular.(…)”.

Somente em 2019, a perda de investimentos na área da saúde representou R$ 20 bilhões, o que significa, na prática, a desvinculação do gasto mínimo de 15% da receita da União com a Saúde, afirma o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

É preciso lembrar que grande parte da população vulnerabilizada mora em favelas e depende quase que exclusivamente do SUS para ter acesso a serviços na área da saúde: 52,1 milhões de brasileiros vivem com uma renda domiciliar per capita de R$ 387 mensais.

A agenda neoliberal, absolutamente cruel, propõe desviar os recursos públicos para favorecer um mercado privado desregulado e de qualidade duvidosa, sem que a população possa participar das decisões públicas. Grandes corporações do setor de saúde querem ser proprietárias das unidades de saúde, sob a velha argumentação de que é preciso modernizar e inovar.

Como nos diz Milton Santos em seu clássico livro “Por uma Outra Globalização”, “o Estado acaba por ter menos recursos para tudo que é social (…) na privatização financia as empresas estrangeiras candidatas à compra do capital social nacional (…) assim, o Estado se omite quanto ao interesse das populações e se torna mais forte, mais ágil, mais presente, ao serviço da economia dominante”.

É nesse contexto que a esquizofrenia fica evidente, pois as mesmas vozes da mídia que condenam a desigualdade e as diversas formas de violência pregam as reformas neoliberais perversas que vêm aprofundando essas desigualdades e a violência contra as populações mais fragilizadas, gerando uma mortandade sem precedentes, seja pela ação do Estado brasileiro, via aparato da segurança pública, seja pela ação ou omissão da gestão pública diante da pandemia.

Em 2022, vamos poder renovar nossos Parlamentos e o Executivo de forma a assegurar representantes comprometidos com toda a sociedade, e não só com a força do “mercado”.

Quem sabe ampliar nossa consciência sobre o regime econômico, social e político em que vivemos e discutir a ganância das elites dominantes nos permita reencontrar, por meio do voto, a democracia e os objetivos comuns da vida humana, trazendo para o centro do debate a solidariedade, a igualdade, o bem comum e o amor na vida comunitária.

Cida Bento
Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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