Economista avalia que crise levou à criação de ‘identidades opostas’ sociais e econômicas
Vinícius Torres Freire – FSP, 31/10/2020
O capitalismo é o único sistema conhecido capaz de tirar massas de pessoas da pobreza. A democracia é o único sistema político sustentável e compatível com o capitalismo. Mas ambos saíram dos trilhos nos últimos 30 ou 40 anos, diz Paul Collier, economista do desenvolvimento e professor da escola de governo da Universidade Oxford (Reino Unido).
Em conferência do projeto “Fronteiras do Pensamento”, nesta quarta-feira (28), ele afirmou que uma das manifestações dessa crise é a formação de “identidades opostas”, fissuras (“rifts”) sociais e econômicas.
Por exemplo, opõem-se metrópoles bem-sucedidas e comunidades menores do interior; trabalhadores com alto nível de instrução e valorizados e aqueles menos instruídos e que vivem de trabalho manual. As comunidades abandonadas estão em revolta. Essas divisões, afirma Collier, seriam um motivo importante da vitória do brexit no Reino Unido e de Donald Trump nos Estados Unidos.
Capitalismo e democracia não funcionam no “piloto automático”. Precisam de uma espécie de intervenção sociopolítica que reforce objetivos comuns e o espírito de reciprocidade (“mutuality”). Com o declínio dessas iniciativas e sentimentos, desenvolveu-se uma sociedade da ganância, na qual a ideia de dever e obrigações seria atributo quase apenas do Estado e em que as decisões são tomadas de cima para baixo e de modo centralizado, nas empresas e no governo. Tais problemas teriam dificultado também o combate à epidemia do novo coronavírus.
Há exemplos de que as coisas não precisam ser assim, afirma Collier. Dinamarca e Nova Zelândia são casos de países de alto desenvolvimento econômico e social, com sentido comunitário. A Nova Zelândia teria tido sucesso contra a Covid-19 porque uma líder como a primeira-ministra Jacinda Ardern convenceu os cidadãos de seu país de que o enfrentamento da doença dependia da formação de uma “equipe de 5 milhões de pessoas [a população neo-zelandeza]”, que ela não tinha certeza de saber de tudo a ser feito e que precisava de colaboração.
Jacinda e líderes como ela criam e reforçam o espírito de uma “comunidade conectada”, de sacrifícios bem-distribuídos em nome do bem comum. Além do mais, promovem “comunidades adaptativas”, em que líderes e cidadãos aceitam a incerteza e procuram inovações, um experimentalismo pragmático de olho no futuro, não em um suposto mundo idílico do passado.
Collier recorreu frequentemente a exemplos da biologia da evolução e do mundo animal para mostrar que os seres humanos não são apenas egoístas e gananciosos. Existiria uma propensão à colaboração social que deve ser explorada (“caçar juntos rende mais do que caçar sozinho”). Como se valer dos bons sentimentos?
O economista e professor de políticas públicas sugere que é preciso ter líderes diferentes, em governos e empresas, embora não diga como. O bom líder é um “comunicador-chefe”, não um “comandante-chefe” que, como macho alfa, lidera pela dominância, por se arrogar o conhecimento de tudo e pela punição. O bom líder demonstra ser capaz de sacrifício em prol do bem comum, é modesto (admite falhas e que não sabe tudo), olha para o futuro e é pragmático (não vem com “pacotes de ideologias prontas” e “manuais”).
Assim, consegue merecer confiança dos liderados: favorece a disseminação da ideia de “objetivo comum” e de que todos possam ter a “dignidade” de contribuir para esse objetivo geral. Logo, o bom líder suscita o espírito de colaboração em sua comunidade, na empresa ou na política. A empresa que muda sua “missão” de “ser a melhor empresa do mundo” para “maximizar o valor do acionista”, um objetivo ridículo, tende a falir, diz Collier, citando exemplos (como o da ICI britânica).
- Com “diálogo”, uma “troca entre iguais”, com respeito às regras do jogo da conversa (como se respeitam as regras do pingue-pongue), genuíno interesse em entender os motivos das opiniões diferentes, a firme intenção de chegar a um entendimento mútuo. Tal conversa inclui aquela entre líderes e a comunidade. Esse tipo de atitude, dos líderes em particular, desenvolve a capacidade de iniciativa (“agency”);
- Com “devolução” do poder de decidir. Trata-se de mais um incentivo ao espírito de iniciativa, de colaborar ativamente para o bem comum. A “devolução” depende da descentralização das decisões (de governos centrais para cidades, de metrópoles para comunidades menores, do líder para outros cidadãos). O experimentalismo é a receita de sociedades autônomas, participativas, capazes de iniciativa e senso de dever: haverá erros, mas haverá também uma solução inovadora em algum lugar.
- Com “pilotos”. Isto é, cidades, empresas, líderes ou entidades de governança em geral capazes de, por assim dizer, “dar o exemplo”, sugerir novos caminhos, sejam formas de produzir ou governar. O exemplo que Collier dá desse tipo de líder, seu “herói”, é Lee Kwan-Yew (1923-2015), “pai fundador” e homem forte de Cingapura de 1959 a 1990, anos em que o país saiu da miséria para a riqueza. Um país bem-sucedido na descentralização seria a Escócia.
Enfim, Collier diz que o capitalismo não é individualismo e ganância, mas inovação e dinamismo, que não depende do “líder no topo”, mas de experimentação descentralizada. A democracia não é apenas eleição regular, mas depende de um tipo de inclusão que promova a capacidade de iniciativa e do diálogo para que se chegue ao “objetivo comum”.