Coronavírus acelerou tendências de prazo mais longo, como a digitalização do varejo, a mudança para o trabalho remoto e a ‘pedestrianização’ das cidades, diz diretor do Instituto Igarapé
Pablo Pereira
Estado de São Paulo, 14/06/2020
Ao mesmo tempo em que coloca em xeque o futuro dos “open offices” e, consequentemente, deve levar à revisão de políticas de mobilidade, a pandemia provocada pelo novo corovavírus não significa o fim da densidade populacional ou da forma como vivemos nos grandes centros urbanos no mundo. A opinião é de Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé. “Embora algumas pessoas certamente venham a se afastar das cidades, não veremos uma desconcentração maciça e uma mudança para os subúrbios”, afirma.
Ele também chama de “fictícia” a ideia de que, a partir de agora, veremos cidades mais “verdes”, com menos carros e mais espaço para pedestres e ciclistas. Mas diz que é inegável que muitas das cidades devem ser “reprogramadas” após o período de confinamento. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:
Quais são as principais mudanças que devem ocorrer nas cidades após a pandemia?
A pandemia está transformando muitos aspectos da vida das cidades em tempo real, sobrecarregando os hospitais, interrompendo o comércio, forçando as pessoas a ficarem fechadas dentro de casa e restringindo o acesso a espaços públicos. Na ausência de uma vacina ou de antivirais adequados, muitas dessas mudanças poderão se tornar permanentes. As cidades já vinham enfrentando problemas crônicos, déficits e escassez de receitas antes da epidemia. Hoje, sua prioridade no curto prazo é salvar vidas, prestar serviços essenciais e manter a lei e a ordem. Mas no longo prazo necessitarão aprender a fazer mais com menos. Muitos prefeitos e Câmaras Municipais em todo o mundo não estão concentrados apenas em conter a doença, mas estão revendo também os seus planos para evitar um próximo surto. No período mais imediato, introduzirão testes rápidos maciços e sistemas de monitoramento digital dos contatos; prédios e espaços públicos terão de ser reformulados tendo em vista o distanciamento social, e deverão reforçar os sistemas de saúde para enfrentar ameaças futuras. A pandemia da covid-19 também vem acelerando tendências mais profundas de prazo mais longo, como a digitalização do varejo, a mudança para o trabalho remoto, a localização da produção de alimentos, a energia renovável distribuída e a “pedestrianização” das cidades. Seria exagerado dizer que a covid-19 mudará todos os aspectos da vida na cidade. A ideia de que as cidades estão de algum modo condenadas é um exagero. Não vemos uma fuga em massa para os subúrbios ou uma ascensão da distopia. Mas a expectativa de que em breve veremos cidades verdes, livres de carros e com mais espaços para bicicletas também é fictícia. O fato é que haverá fatores empurrando as pessoas a partirem do seu local de origem e também fatores que atrairão uma população para outra área ou lugar. O que sabemos é que a pandemia vai reprogramar muitas das nossas cidades.
Como a distância social afetará o trabalho, o lazer e a movimentação das pessoas nas cidades a partir de agora?
O distanciamento social ou físico terá efeitos de curto e longo prazo na vida cotidiana. Muitas cidades introduzirão testes em massa e até espaços de emergência digitais – essas medidas devem variar, dependendo da intensidade das ondas futuras. O que isso significa em termos práticos é que máscaras faciais, testes biométricos, vistos de imunização e outras restrições serão generalizados. Devemos esperar um aumento de gastos em saúde pública e “cercas virtuais”, além de sistemas de monitoramento de contatos para manter as pessoas resguardadas. Pode-se dizer que a mudança mais significativa é no sentido do trabalho remoto e digitalizado. Isso já vinha ocorrendo, mas vem se acelerando rapidamente por causa do chamado “onboarding” digital em larga escala. Facebook, Apple, Twitter, Microsoft já têm um grande número de empregados trabalhando off-site, alguns deles de modo permanente. Muitas startups já declararam a morte do escritório. Isso tudo obviamente terá grande impacto sobre o espaço de escritório e o futuro dos centros das cidades no mundo todo. Algumas cidades também sofrerão mudanças nos espaços públicos onde as pessoas se reúnem. Devemos esperar reformulações em tudo, desde os edifícios de escritórios aos shopping centers e arenas esportivas. O “open office” acabou neste momento. E também veremos novas rotinas em termos de trabalho e mobilidade, incluindo uma redução do volume de pessoas em linhas de metrô e ônibus próximos a elas.
A pandemia também vem acelerando um boom na virtualização dos espaços público e privado. Galerias, museus e sítios históricos já vinham oferecendo visitas digitais e essas ofertas aumentarão. Isso não é obviamente um substituto para o turismo, mas é o futuro – o modelo de negócio no qual se baseiam e a monetização dessas ofertas não estão ainda claros, mas devemos esperar uma expansão delas. E já estamos observando uma rápida virtualização do sistema de delivery de serviços, especialmente em termos de saúde e educação. Desde o surgimento da covid-19, temos visto uma transição importante no campo dos ensinos primário, secundário e universitário. Este é um teste para o futuro. E também vimos uma explosão dos serviços de telemedicina – agora mais possível de acabar com as divisões digitais. Isso está acelerando uma tendência no sentido de serviços impulsionados pelas pessoas e possibilitados pela Inteligência Artificial. Algumas dessas mudanças de curto prazo permanecerão. A pandemia não está apenas arruinando o turismo em muitas cidades, mas está devastando o modelo de negócio subjacente de grandes novas companhias, como AirBnB e Uber. As duas empresas serão obrigadas a mudar radicalmente seu modelo e pelo menos uma delas talvez não sobreviva. Como cidades que dependem do turismo em todo o mundo vão se recuperar, incluindo o Brasil, é uma grande pergunta. Claramente, haverá um grande foco na promoção do turismo doméstico.
Há uma possibilidade de mudanças reais como a emergência de um novo sistema de transporte urbano, hoje baseado em metrôs, ônibus e carros particulares?
A covid-19 está levantando perguntas fundamentais sobre o futuro do trânsito, incluindo o transporte público e o tráfego de massa. No médio prazo, aviões, trens e ônibus, incluindo os serviços de carona como Lyft e Uber, terão dificuldade para continuar com o mesmo número de passageiros sem ajustes no tocante ao distanciamento social – devemos esperar medidas para melhorar a higiene e reduzir a superlotação. O futuro do automóvel é mais incerto. De um lado, o uso do carro pode aumentar à medida em que as pessoas evitarem usar o transporte público, o que pode gerar aumento perigoso dos congestionamentos e emissões. De outro, há também potencial para uma redução do uso do carro, provocada pelas mudanças no ambiente de trabalho. As empresas de aluguel de carros observaram uma queda dramática da demanda, e os futuros desafios econômicos devem reduzir novas compras de veículos. É possível também que vejamos um florescimento do transporte de massa sustentável e da “pedestrianização”. Medidas temporárias adotadas em algumas cidades, de Milão a Melbourne, para criar pistas para bicicletas e cidades abertas durante a crise da covid-19 se tornaram permanentes. Muitas cidades estão agora pavimentando e convertendo ruas em caminhos para bicicletas. As cidades futuras serão mais “caminháveis” e com mais bikes, cidades onde podemos chegar ao destino em 15 minutos. Isso não reduz apenas o congestionamento, mas melhora a saúde pública, diminui a poluição e até mesmo o crime.
O senhor imagina que, com o isolamento social, as comunicações digitais podem transformar a maneira como os cidadãos interagem? E como o senhor vê questões como a proteção da privacidade digital e dos dados? É possível, por exemplo, estabelecermos uma educação a distância qualificada?
Com a covid-19 forçando as pessoas a trabalhar e interagir online, o mundo viveu em apenas alguns meses o equivalente a dez anos de digitalização. Alguns países e cidades já estavam investindo pesado em serviços eletrônicos e expandindo a banda larga para seus habitantes. E este processo vai continuar em muitos lugares do mundo. Essa virtualização gerou eficiências e melhorias. T também acelerou a adoção de serviços remotos de educação e saúde (embora seja muito cedo para dizer se isso vai dar certo ou não). Ao mesmo tempo, viver em um mundo dominado pelo Zoom e por algoritmos que moldam nossos hábitos de consumo reduz a possibilidade do inesperado e da criatividade – exatamente as coisas que fazem a vida na cidade valer tanto a pena.
A massiva digitalização dos serviços também tem um lado sombrio. Alguns governos (de mentalidade autoritária) estão expandindo a vigilância e implementando tecnologias invasivas em nome da saúde pública. Nos países democráticos, o tema do rastreamento de contatos inspirou um importante debate sobre a natureza da proteção e da privacidade dos dados. Essa discussão está mais avançada na Europa e na América do Norte, mas vem se espalhando pelo resto do mundo. Também estão surgindo questões importantes sobre os efeitos da covid-19 na governança. A doença já está atrapalhando a realização de eleições e manifestações, com consequências para a integridade da democracia e dos direitos humanos. A grande questão não é apenas como fazer campanhas e audiências públicas em um mundo digital, mas também como garantir eleições digitais seguras.
Nos últimos anos, os planejadores urbanos vêm trabalhando para aumentar a densidade populacional nas cidades, com o intuito de reduzir custos e promover uma convivência baseada na proximidade das pessoas. O que vai acontecer agora? É possível tomar a direção oposta?
A densidade é uma grande virtude das cidades. Como observou o economista Paul Romer, vencedor do Prêmio Nobel, a capacidade dos aglomerados de pessoas para agregar inovação e produtividade é uma força irresistível. O fato é que as cidades compactas também conseguem facilitar os serviços sociais e de saúde, reduzir o isolamento social e proporcionar todos os outros “bens” para uma cidade saudável. A covid-19 não significa a morte da densidade. Embora algumas pessoas certamente venham a se afastar das cidades, não veremos uma desconcentração maciça e uma mudança para os subúrbios. Os assentamentos humanos têm sido focos de contágio por milhares de anos. Apesar disso, as pessoas talentosas sempre retornam às cidades, atraídas pela perspectiva de melhores empregos, salários mais altos e estilos de vida mais interessantes do que no interior. Mas o que a covid-19 revelou é como a densidade também pode se reproduzir e intensificar vulnerabilidades em certos segmentos da população – especialmente os pobres, os idosos, os doentes crônicos e os grupos minoritários. O problema são as condições econômicas e sociais estruturais, não a densidade em si. O que a covid-19 também pode fazer, paradoxalmente, é aumentar a disponibilidade de moradias populares, à medida em que os espaços comerciais ficarem vagos e forem reaproveitados e que algumas pessoas se mudem para os subúrbios recém-gentrificados. Muito mais perigosa que a densidade são a superlotação e o acesso desigual aos serviços básicos. Em muitas cidades de baixa e média renda, especialmente nas favelas e assentamentos irregulares, os pobres vivem amontoados em edificações precárias e mal ventiladas, o que facilita a propagação da doença. Muitos não têm acesso a água potável, saneamento básico e nem mesmo eletricidade constante. Essas pessoas muitas vezes se espremem em ônibus lotados para ir e voltar do trabalho. A indeterminação dos direitos de propriedade garante que os pobres urbanos não tenham acesso a muitos serviços públicos básicos ou ferramentas bancárias e de crédito.
Um dos setores mais afetados pela pandemia nas grandes aglomerações urbanas de hoje é o comércio. O senhor acha que as coisas voltarão a ser como antes? Ou teremos o sistema Amazon como modelo para abastecer as famílias?
A pandemia de covid-19 forçou uma pausa na globalização. Desacelerou não apenas o movimento de bens e serviços, mas também o turismo e as viagens. Além disso, apressou o processo de desagregação das cadeias de alguns países, principalmente da China. Vimos muitas empresas adotando medidas para encurtar suas cadeias de suprimentos e deixar a produção mais local. Essas tendências já estavam aparentes antes do surto e provavelmente vão se intensificar nos próximos anos. Isso será particularmente traumático para indústrias, empresas aéreas e grandes redes de hotéis. Além disso, a covid-19 tem sido devastadora para empresas de pequeno e médio portes que não se posicionaram rapidamente na internet. A maioria das lojas do mundo está vendendo seus produtos – de computadores a peças de automóveis – no ciberespaço. Embora algumas delas tenham recursos suficientes para enfrentar a crise (inclusive subsídios do governo), muitas entrarão em colapso porque não conseguirão sobreviver a choques prolongados de oferta e demanda. Grandes varejistas online, como a Amazon, a Shopify e, agora, o Facebook, vão se dar bem. Infelizmente, muitos pontos de venda menores estão correndo risco muito maior, apesar de serem os ativos que dão identidade e personalidade às cidades.