Economistas neoclássicos não estão acostumados a lidar com pessoas
Folha de São Paulo, 20/05/2020
Marília Bassetti Marcato
Uma das principais lições da pandemia do novo coronavírus é o risco de eleger lideranças que tenham como hábito ignorar as evidências.
Atualmente, sabemos que idosos e pessoas de qualquer idade com sérias condições médicas subjacentes correm risco maior de contrair doença grave por causa da Covid-19. Pessoas com doença pulmonar crônica ou asma de moderada a grave, pessoas com problemas cardíacos, pessoas imunocomprometidas, pessoas que transplantaram órgãos, pessoas de qualquer idade com obesidade grave, pessoas com diabetes, pessoas com insuficiência renal ou doença hepática. Pessoas.
Os economistas neoclássicos não estão acostumados a lidar com pessoas. Historicamente, eles buscaram artificialmente se separar de outros campos de estudo, isentando-se da exigência de testabilidade empírica tão cara às ciências “duras”. Nesse tortuoso caminho, a economia neoclássica parece ter invertido o objetivo da pesquisa científica de descobrir a realidade sob a aparência, assumindo a forma de uma estrutura analítica cada vez mais formalista, axiomática e dedutiva.
Um “indivíduo sem individualidade” costuma assustar àqueles que não possuem treinamento fornecido em graduações de economia. Em pouco tempo, o aspirante a economista entende que é preciso fazer sacríficos para gerar soluções. Assim, não são incomuns análises econômicas que eliminam o tempo e o espaço, sem qualquer referência às evidências empíricas.
O prodigioso reducionismo da economia neoclássica estabeleceu conceitos e aparato técnico fundamentais para expandir a influência da economia para outras ciências sociais. Segundo Ben Fine e Dimitris Milonakis em “From economics imperialism to freakonomics”, essa característica reducionista teria um caráter triplo. Primeiro, o reducionismo do indivíduo constitui o principal elemento analítico (com o coletivo a partir da simples agregação de indivíduos). Segundo, a economia é reduzida às relações de oferta e demanda de mercado. Por fim, a análise econômica seria baseada em princípios sem apego à história.
Se o mundo real é profundamente diferente, este não parece ser um problema. Para os preocupados com o irrealismo das suposições, Milton Friedman deu a palavra de ordem metodológica: “Não se preocupem com as suposições, apenas observem suas consequências”. Pouco importa se todos os empresários buscam ou não maximizar seus lucros, o que importa é que tudo deve ocorrer como se os mesmos se comportassem de tal forma.
Mas o que restará da economia mainstream após a pandemia?
É certo que se ocupar de problemas concretos é uma virtude rara no meio da ciência econômica dominante, uma vez que não é de hoje que a dita ciência triste escolhe tratar de tópicos com menor probabilidade de suscitar questões de importância fundamental. Mas momentos de crise como o atual incitam perguntas fundamentais sobre a relação entre Estado e mercado que parecem desafiar a nossa compreensão.
A pandemia reforça a necessidade de repensar dogmas sobre o funcionamento da economia. Não há como separar a economia da sociedade e é, portanto, falsa a noção de que o arranjo econômico pode ser analisado independentemente dos processos de saúde pública e das interações sociais. Com isso em mente, não é preciso muito para identificar o descaramento dos sociólogos de mercado brasileiros quando comemoram que o pico da doença nas classes altas já passou.
No entanto, persiste a incapacidade da economia mainstream de considerar o funcionamento e a dinâmica dos sistemas econômicos em seus modelos abstratos e com amnésia histórica. Se todos somos keynesianos em momentos de crise, supor que o mercado é uma máquina autorreguladora certamente contém “um elemento de verdade, um elemento de má-fé e também algum engano” (salve, Braudel!).
Mas há uma esperança. Se a arrogância —traço tão comum aos economistas mainstreams— der lugar ao reencontro da ciência econômica com as demais ciências, em especial as sociais, é possível que os cálculos de quanto vale uma vida sejam deixados de lado.
Caso contrário, caberá à desconfiança popular decretar a morte da ciência econômica antes que a ciência econômica mate o povo.
Marília Bassetti Marcato
Professora do Instituto de Economia da UFRJ