Folha de São Paulo, 15/05/2020.
Não precisam ter medo: prática não provocará aumento da dívida pública
Desde o fim de março venho defendendo que o Banco Central seja autorizado a emitir dinheiro para financiar os grandes gastos necessários para enfrentar o novo coronavírus. Já há algum tempo o tema é objeto de uma reforma constitucional, a emenda da guerra à Covid-19. Os membros do Congresso, porém, mal assessorados, e a opinião pública brasileira, ainda escaldada pela grande inflação de 1980-1994, tem medo de que isso provoque alta de preços.
Não precisam ter medo. No quadro atual de aumento violento do desemprego e de recessão —senão depressão—, a compra de títulos novos do Tesouro não causará inflação. Hoje, depois de ter sido abandonada pelos bancos centrais nos anos 1990, e depois das enormes emissões de moeda feitas pelos países ricos desde 2009 sem que houvesse qualquer inflação, a teoria monetarista está completamente desmoralizada.
Essa prática, baseada em uma identidade elementar (MV=Py), transformava-se em uma teoria na qual V, o número de vezes em que a mesma moeda é usada no ano, era considerada constante; e, portanto, a inflação (P) era causada pelo aumento da quantidade de moeda (M) acima do aumento da produção (y). Na prática, a velocidade de circulação da moeda não é constante, e é o PIB que determina a quantidade de moeda. O aumento dos preços independe da quantidade de moeda; ele é causado pelo excesso de demanda, que não faz parte dessa equação.
Como é possível que a variação do PIB determine a quantidade de moeda em circulação? Porque o dinheiro é criado pelo aumento do crédito, seja ao setor privado ou ao Estado, e o crédito tende a crescer com o PIB para que a moeda possa desempenhar seu papel de óleo lubrificante do motor econômico. Quando o país entra em recessão e precisa aumentar fortemente sua despesa pública, o Tesouro precisa de crédito para financiá-lo, e, portanto, haverá uma emissão de moeda, não importando se os títulos emitidos forem financiados pelo setor privado ou público.
Portanto, se concordamos que o Estado precisará realizar grandes gastos, muito mais do que os 3,2% hoje previstos, haverá emissão de moeda, tanto quando o setor privado for o credor quanto se o Banco Central fizer esse papel.
Qual é, então, a diferença entre a venda de títulos do Tesouro ao setor privado ou ao Banco Central? A diferença objetiva é que no primeiro caso haverá aumento da dívida pública, que depois precisará ser paga e envolverá anos de austeridade, enquanto no segundo não há aumento da dívida pública. A dívida pública é a dívida do Estado, e tanto o Tesouro quanto o Banco Central fazem parte dele. Em termos líquidos, não há qualquer aumento da dívida pública.
É verdade que as normas contábeis geralmente seguidas pelos países não reconhecem esse fato. Segundo meus cálculos, o Japão deve ter reduzido em 77%, e os Estados Unidos, em 12% do PIB sua dívida pública entre 2009 e 2019 —mas a dívida pública contabilizada desses dois países não mudou por isso. Porque os economistas adoram ficções.
Neste momento, é importante jogar no lixo esse medo de emissão de moeda. Porque não haverá aumento da dívida pública e porque não se deve prever que o governo federal mergulhe na irresponsabilidade fiscal —ele apenas terá menos medo em realizar os gastos necessários.
Parece que esse medo está diminuindo. No dia 1º de maio, a Folha dedicou duas páginas ao problema da emissão de moeda via Banco Central-Tesouro.
Paulo Guedes diz que pode emitir moeda se a inflação for a zero. Dois economistas igualmente ortodoxos, Henrique Meirelles e Márcio Garcia, defendem essa política. E a Folha defende que “ao imprimir dinheiro, o Estado cria poder de compra que antes não existia”. Equivoca-se apenas em afirmar que haverá aumento da dívida pública.
A compra de títulos do Tesouro pelo Banco Central precisará ser cuidadosamente regulada e transparentemente controlada. Dessa maneira, estou seguro que será um trunfo na luta contra a Covid-19 e a depressão à vista.