Por Pierre Dardot e Christian Laval, no Viento Sur
Traduzido pelo IHU
Há uma dezena de anos vem se anunciando regularmente o fim do neoliberalismo: a crise financeira mundial de 2008 se apresentou como o último estertor de sua agonia, depois, foi a vez da crise grega na Europa (ao menos até julho de 2015), sem esquecer, é claro, o terremoto causado pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em novembro de 2016, seguido do referendo sobre o Brexit, em março de 2017.
O fato de Grã-Bretanha e Estados Unidos, que foram terras de promissão do neoliberalismo em tempos de Thatcher e Reagan, deixarem parecer que lhe viraram as costas mediante uma reação nacionalista tão repentina, marcou os espíritos em razão do seu alcance simbólico.
Depois, em outubro de 2018, ocorreu a eleição de Jair Bolsonaro, que promete tanto o retorno da ditadura como a aplicação de um programa neoliberal de uma violência e uma amplitude muito parecidas com as dos Chicago Boys de Pinochet.
O neoliberalismo não só sobrevive como sistema de poder, como também se reforça. É preciso compreender esta singular radicalização, o que implica discernir o caráter tanto plástico, como plural do neoliberalismo. Mas, é necessário ir ainda mais longe e perceber o sentido das transformações atuais do neoliberalismo, ou seja, a especificidade do que aqui chamamos o novo neoliberalismo.
A crise como modo de governo
Recordemos de início o que significa o conceito de neoliberalismo, que perde uma grande parte de sua pertinência quando é empregado de forma confusa, como acontece muitas vezes. Não se trata somente de políticas econômicas monetaristas ou de austeridade, de mercantilização das relações sociais ou de ditadura dos mercados financeiros. Trata-se mais fundamentalmente de uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até a converter na forma das subjetividades e na norma das existências.
Projeto radical e inclusive, caso se queira, revolucionário, o neoliberalismo não se confunde, portanto, com um conservadorismo que se contenta em reproduzir as estruturas desiguais estabelecidas. Através do jogo das relações internacionais de concorrência e dominação e da mediação das grandes organizações de ‘governança mundial’ (FMI, Banco Mundial, União Europeia, etc.), este modo de governo se tornou com o tempo um verdadeiro sistema mundial de poder, comandado pelo imperativo de sua própria manutenção.
O que caracteriza este modo de governo é que se alimenta e se radicaliza por meio de suas próprias crises. O neoliberalismo só se sustenta e se reforça porque governa mediante a crise. Com efeito, desde os anos 1970, o neoliberalismo se nutre das crises econômicas e sociais que gera. Sua resposta é invariável: em vez de questionar a lógica que as provocou, é preciso levar ainda mais longe essa mesma lógica e procurar reforçá-la indefinidamente.
Se a austeridade gera déficit orçamentário, é preciso acrescentar uma dose suplementar. Se a concorrência destrói o tecido industrial ou desertifica regiões, é preciso aguçá-la ainda mais entre as empresas, entre os territórios, entre as cidades. Se os serviços públicos já não cumprem sua missão, é preciso esvaziar esta última de qualquer conteúdo e privar os serviços dos meios que precisam. Se a diminuição de impostos para os ricos ou empresas não dão os resultados esperados, é preciso aprofundar ainda mais nisto, etc.
Este governo mediante a crise só é possível, está claro, porque o neoliberalismo se tornou sistêmico. Toda crise econômica, como a de 2008, é interpretada em termos de sistema e só recebe respostas que compatíveis com o mesmo. A ausência de alternativas não é tão somente a manifestação de um dogmatismo no plano intelectual, mas a expressão de um funcionamento sistêmico, em escala mundial. Para amparar a globalização e/ou reforçar a União Europeia, os Estados impuseram múltiplas regras e imperativos que os levam a reagir no sentido do sistema.
Contudo, o que é mais recente e sem dúvida merece nossa atenção é que agora se nutre das reações negativas que provoca no plano político, que se reforça com a mesma hostilidade política que suscita. Estamos assistindo a uma de suas metamorfoses, e não é a menos perigosa. O neoliberalismo já não precisa de sua imagem liberal ou democrática, como nos bons tempos que é necessário chamar, com razão, de neoliberalismo clássico. Esta imagem inclusive se tornou um obstáculo para sua dominação, coisa que somente é possível porque o governo neoliberal não hesita em instrumentalizar os ressentimentos de um amplo setor da população, falta de identidade nacional e de proteção pelo Estado, dirigindo-os contra bodes expiatórios.
No passado, muitas vezes, o neoliberalismo se associou com a abertura, o progresso, as liberdades individuais, com o Estado de direito. Atualmente, conjuga-se com o fechamento de fronteiras, a construção de muros, o culto à nação e a soberania do Estado, a ofensiva declarada contra os direitos humanos, acusados de colocar em perigo a segurança. Como é possível esta metamorfose do neoliberalismo?
Trumpismo e fascismo
Trump é incontestavelmente um marco na história do neoliberalismo mundial. Esta mutação não afeta apenas os Estados Unidos, mas todos os governos, cada vez mais numerosos, que manifestam tendências nacionalistas, autoritárias e xenófobas até o ponto de assumir a referência ao fascismo, como no caso de Matteo Salvini, ou à ditadura militar, como Bolsonaro.
O fundamental é compreender que estes governos não se opõem em nada ao neoliberalismo como modo de poder. Ao contrário, reduzem os impostos para os mais ricos, cortam os subsídios sociais e aceleram as desregulamentações, particularmente em matéria financeira e ambiental. Estes governos autoritários, dos quais a extrema direita cada vez mais faz parte, assumem na realidade o caráter absolutista e hiperautoritário do neoliberalismo.
Para compreender esta transformação, primeiro convém evitar dois erros. O mais antigo consiste em confundir o neoliberalismo com o ultraliberalismo, o libertarianismo, o retorno a Adam Smith ou o fim do Estado, etc. Como já nos ensinou há muito tempo Michel Foucault, o neoliberalismo é um modo de governo muito ativo, que não tem muito a ver com o Estado mínimo passivo do liberalismo clássico. Deste ponto de vista, a novidade não consiste no grau de intervenção do Estado, nem em seu caráter coercitivo. O novo é que o antidemocratismo inato do neoliberalismo, manifesto em alguns de suas grandes teóricos, como Friedrich Hayek, se plasma hoje em um questionamento político cada vez mais aberto e radical dos princípios e as formas da democracia liberal.
O segundo erro, mais recente, consiste em explicar que estamos diante de um novo fascismo neoliberal, ou então diante de um momento neofascista do neoliberalismo [2]. Que seja ao menos frustrante, se não perigoso politicamente, falar com Chantal Mouffe de um momento populista para apresentar melhor o populismo como um remédio ao neoliberalismo, isto está fora de qualquer dúvida. Que seja necessário desmascarar a impostura de um Emmanuel Macron, que se apresenta como o único recurso contra a democracia iliberal de Viktor Orbán e consortes, isto também é certo. Mas, por acaso, isto justifica que se misture em um mesmo fenômeno político a ascensão das extremas direitas e a deriva autoritária do neoliberalismo?
A assimilação é evidentemente problemática: como identificar se não mediante uma analogia superficial o Estado total tão característico do fascismo e a difusão generalizada do modelo de mercado e da empresa no conjunto da sociedade? No fundo, se esta assimilação permite lançar luz, centrando-nos no fenômeno Trump, sobre certo número de traços do novo neoliberalismo, ao mesmo tempo mascara sua individualidade histórica. A inflação semântica em torno do fascismo, sem dúvida, tem efeitos críticos, mas tende a afogar os fenômenos ao mesmo tempo complexos e singulares em generalizações pouco pertinentes, que por sua vez não podem a não ser dar lugar a um desarme político.
Para Henry Giroux [3], por exemplo, o fascismo neoliberal é uma “formação econômico-política específica”, que mistura ortodoxia econômica, militarismo, desprezo pelas instituições e as leis, supremacismo branco, machismo, ódio aos intelectuais e amoralismo. Giroux toma emprestado do historiador do fascismo, Robert Paxton (2009), a ideia de que o fascismo se apoia em paixões mobilizadoras que voltamos a encontrar no fascismo neoliberal: amor ao chefe, hipernacionalismo, fantasmas racistas, desprezo ao débil, inferior, estrangeiro, desconsideração pelos direitos e a dignidade das pessoas, violência para com os adversários, etc.
Embora encontramos todos estes ingredientes no trumpismo e mais ainda no bolsonarismo brasileiro, por acaso, não nos escapa sua especificidade em relação ao fascismo histórico? Paxton admite que “Trump retoma vários motivos tipicamente fascistas”, mas vê nele sobretudo os traços mais comuns de uma “ditadura plutocrática” [4]. Porque também existem grandes diferenças com o fascismo: não impõe o partido único, nem a proibição de qualquer oposição e de qualquer dissidência, não mobiliza e enquadra as massas em organizações hierárquicas obrigatórias, não estabelece o corporativismo profissional, não pratica liturgias de uma religião laica, não preconiza o ideal do cidadão soldado totalmente consagrado ao Estado total, etc. (Gentile, 2004).
A este respeito, todo paralelismo com o final dos anos 1930, nos Estados Unidos, é enganoso, por mais que Trump tenha feito seu o lema “America first”, nome dado por Charles Lindbergh à organização fundada em outubro de 1940 para promover uma política isolacionista frente ao intervencionismo de Roosevelt. Trump não converte em realidade a ficção escrita por Philip Roth (2005), que imaginou que Lindbergh triunfaria sobre Roosevelt nas eleições presidenciais de 1940. Ocorre que Trump não é para Clinton ou Obama o que Lindbergh foi para Roosevelt e que, neste sentido, qualquer analogia é precária. Se Trump estimula cada vez mais a escalada antiestablishment para agradar sua clientela eleitoral, não trata, no entanto, de suscitar revoltas antissemitas, ao contrário do Lindbergh do romance, inspirado diretamente no exemplo nazista.
Mas, sobretudo, não estamos vivendo um momento polanyiano, como acredita Robert Kuttner (2018), caracterizado pela recuperação do controle dos mercados pelos poderes fascistas frente aos estragos causados pelo não intervencionismo. Em certo sentido, é totalmente o contrário, e o caso é bastante mais paradoxal. Trump pretende ser o campeão da racionalidade empresarial, inclusive em sua maneira de realizar sua política, tanto interior como exterior. Vivemos o momento em que o neoliberalismo segrega a partir do interior uma forma política original que combina autoritarismo antidemocrático, nacionalismo econômico e racionalidade capitalista ampliada.
Uma crise profunda da democracia liberal
Para compreender a mutação atual do neoliberalismo e evitar confundi-la com o seu fim é preciso ter uma concepção dinâmica do mesmo. Três ou quatro decênios de neoliberalização afetaram profundamente a própria sociedade, instalando em todos os aspectos das relações sociais situações de rivalidade, de precariedade, de incerteza, de empobrecimento absoluto e relativo. A generalização da concorrência nas economias, assim como, indiretamente, no trabalho assalariado, nas leis e nas instituições que marcam a atividade econômica, teve efeitos destrutivos na condição das pessoas assalariadas, que se sentiram abandonadas e traídas. As defesas coletivas da sociedade, por sua vez, se fragilizaram. Os sindicatos, em particular, perderam força e legitimidade.
Os coletivos de trabalho se decompuseram, muitas vezes, por efeito de uma gestão empresarial muito individualista. A participação política já não tem sentido diante da ausência de opções alternativas muito diferentes. Por certo, a social-democracia, assentida à racionalidade dominante, está em vias de desaparecimento em um grande número de países.
Em suma, o neoliberalismo gerou o que Gramsci chamou de ‘monstros’ mediante um duplo processo de desfiliação da comunidade política e de adesão a princípios etnoidentitários e autoritários, que colocam em questionamento o funcionamento normal das democracias liberais. O trágico do neoliberalismo é que, em nome da razão suprema do capital, atacou os próprios fundamentos da vida social, do modo como havia sido formulado e imposto na época moderna, através da crítica social e intelectual.
Para dizer isso de maneira um tanto esquemática, a implementação dos princípios mais elementares da democracia liberal comportou rapidamente muito mais concessões às massas do que poderia ser aceito pelo liberalismo clássico. Este é o sentido do que se chamou justiça social ou também democracia social, que não deixou de ser criticada pelos grupos de teóricos neoliberais. Ao querer converter a sociedade em uma ordem da concorrência que só conheceria homens econômicos ou capitais humanos em luta uns contra outros, minaram as próprias bases da vida social e política nas sociedades modernas, especialmente em razão da progressão do ressentimento e da cólera que semelhante mutação não poderia deixar de provocar.
Como se surpreender então com a resposta da massa de perdedores ao estabelecimento desta ordem competitiva? Ao ver se degradar suas condições e desaparecer seus pontos de apoio e de referência coletivos, refugiam-se na abstenção política ou no voto de protesto, que é antes de mais nada um chamado à proteção contra as ameaças que pesam sobre sua vida e seu futuro. Em poucas palavras, o neoliberalismo engendrou uma crise profunda da democracia liberal-social, cuja manifestação mais evidente é a forte ascensão dos regimes autoritários e dos partidos de extrema direita, apoiados por uma ampla parte das classes populares nacionais. Deixamos para trás a época do pós-guerra fria, na qual ainda era possível acreditar na expansão mundial do modelo de democracia de mercado.
Assistimos agora, e de forma acelerada, um processo inverso de saída da democracia ou de desdemocratização, para retomar a justa expressão de Wendy Brown. Os jornalistas gostam de misturar a extrema direita e a esquerda radical no vasto marasmo de um populismo antissistema. Não veem que a canalização e a exploração desta cólera e destes ressentimentos pela extrema direita dão luz a um novo neoliberalismo, ainda mais agressivo, ainda mais militarizado, ainda mais violento, do qual Trump é tanto a bandeira como a caricatura.
O novo neoliberalismo
O que aqui chamamos de novo neoliberalismo é uma versão original da racionalidade neoliberal na medida em que adotou abertamente o paradigma da guerra contra a população, apoiando-se, para se legitimar, na cólera dessa mesma população e invocando, inclusive, uma soberania popular dirigida contra as elites, contra a globalização ou contra a União Europeia, de acordo com os casos.
Em outras palavras, uma variante contemporânea do poder neoliberal fez sua a retórica do soberanismo e adotou um estilo populista para reforçar e radicalizar o domínio do capital sobre a sociedade. No fundo, é como se o neoliberalismo aproveitasse a crise da democracia liberal-social que provocou e não cessa de agravar para impor melhor a lógica do capital sobre a sociedade.
Esta recuperação da cólera e dos ressentimentos requer sem dúvida, para ser realizada efetivamente, o carisma de um líder capaz de encarnar a síntese, outrora improvável, de um nacionalismo econômico, uma liberalização dos mecanismos econômicos e financeiros e uma política sistematicamente pró-empresarial. No entanto, atualmente, todas as formas nacionais do neoliberalismo experimentam uma transformação de conjunto, da qual o trumpismo nos oferece a forma quase pura.
Esta transformação acentua um dos aspectos genéricos do neoliberalismo, seu caráter intrinsecamente estratégico. Porque não esqueçamos que o neoliberalismo não é conservadorismo. É um paradigma governamental cujo princípio é a guerra contra as estruturas arcaicas e as forças retrógradas que resistem à expansão da racionalidade capitalista e, mais amplamente, a luta para impor uma lógica normativa a populações que não a querem.
Para alcançar seus objetivos, este poder emprega todos os meios que lhe são necessários: a propaganda dos meios de comunicação, a legitimação pela ciência econômica, a chantagem e a mentira, o descumprimento das promessas, a corrupção sistêmica das elites, etc. Contudo, uma de suas alavancas preferidas é o recurso às vias da legalidade, leia-se da Constituição, de modo que cada vez mais o marco no qual todos os atores devem se mover se torne irreversível. Uma legalidade que evidentemente é de geometria variável, sempre mais favorável aos interesses das classes ricas que aos do restante.
Não é necessário recorrer ao estilo antigo, aos golpes de Estado militares, para colocar em prática os preceitos da escola de Chicago, se é possível colocar um cadeado no sistema político, como no Brasil, mediante um golpe parlamentar e judicial. Este último permitiu, por exemplo, ao presidente Temer congelar durante 20 anos os gastos sociais (sobretudo em detrimento da saúde pública e da universidade). Na realidade, o brasileiro não é um caso isolado, por mais que lá os recursos da manobra sejam mais visíveis que em outras partes, sobretudo após a vitória de Bolsonaro como ponto de chegada do processo. O fenômeno, para além de suas variações nacionais, é geral: é no interior do marco formal do sistema político representativo que se estabelecem dispositivos antidemocráticos de uma temível eficácia corrosiva.
Um governo de guerra civil
A lógica neoliberal contém em si mesma uma declaração de guerra a todas as forças de resistência às reformas em todas as camadas da sociedade. A linguagem vigente entre os governantes de todos os níveis não engana: a população inteira precisa se sentir mobilizada pela guerra econômica, e as reformas do direito trabalhista e da proteção social são realizadas justamente para favorecer o envolvimento universal nessa guerra. Tanto no plano simbólico como no institucional, ocorre uma mudança a partir do momento em que o princípio de competitividade adquire um caráter quase constitucional.
Posto que estamos em guerra, os princípios da divisão de poderes, dos direitos humanos e da soberania do povo já possuem apenas um valor relativo. Em outras palavras, a democracia liberal-social tende progressivamente a se esvaziar para passar a não ser mais que o revestimento jurídico-político de um governo de guerra. Aqueles que se opõem à neoliberalização se situam fora do espaço público legítimo, são maus patriotas, quando não traidores.
Esta matriz estratégica das transformações econômicas e sociais, muito próxima a um modelo naturalizado de guerra civil, se junta com outra tradição, esta mais genuinamente militar e policial, que declara a segurança nacional a prioridade de todos os objetivos governamentais. A fragilização das liberdades públicas do Estado de direito e a extensão concomitante dos poderes policiais se acentuaram com a guerra contra a criminalidade e a guerra contra a droga dos anos 1970.
Contudo, foi sobretudo após a declaração de guerra mundial contra o terrorismo, imediatamente depois do 11 de setembro de 2001, que se deu o desdobramento de um conjunto de medidas e dispositivos que violam abertamente as regras de proteção das liberdades na democracia liberal, chegando inclusive a incorporar na lei a vigilância massiva da população, a legalização do encarceramento sem julgamento e o uso sistemático da tortura.
Para Bernard E. Harcourt (2018), este modelo de governo, que consiste em “fazer a guerra contra todo cidadão”, procede em linha direta das estratégias militares contrainsurgentes colocadas em prática pelo exército francês na Indochina e na Argélia, transmitidas aos especialistas estadunidenses da luta anticomunista e praticadas por seus aliados, especialmente na América Latina e no sudeste asiático.
Hoje, a “contrarrevolução sem revolução”, como a denomina Harcourt, busca reduzir por todos os meios a um inimigo interior e exterior onipresente, que tem muito mais cara de jihadista, mas que pode adotar muitas outras caras (estudantes, ambientalistas, camponeses, jovens negros nos Estados Unidos ou jovens dos subúrbios na França, e talvez, sobretudo neste momento, migrantes ilegais, preferentemente muçulmanos). E para levar a bom término esta guerra contra o inimigo, convém que o poder, por um lado, militarize a polícia e, por outro, acumule uma massa de informações sobre toda a população com a finalidade de impedir qualquer rebelião possível. Em suma, o terrorismo de Estado se encontra novamente em plena progressão, até mesmo quando a ameaça comunista, que lhe havia servido de justificativa durante a Guerra Fria, desapareceu.
A imbricação destas duas dimensões, a radicalização da estratégia neoliberal e o paradigma militar da guerra contrainsurgente, a partir da mesma matriz de guerra civil, constitui atualmente o principal acelerador da saída da democracia. Este enlace só é possível graças à habilidade com a qual certo número de responsáveis políticos da direita, ainda que também da esquerda, se dedicam a canalizar, mediante um estilo populista, os ressentimentos e o ódio aos inimigos escolhidos, prometendo às massas ordem e proteção em troca de sua adesão à política neoliberal autoritária.
O neoliberalismo de Macron
No entanto, não é exagerado meter todas as formas de neoliberalismo no mesmo saco de um novo neoliberalismo? Existem tensões muito fortes em escala mundial ou europeia entre o que se deve qualificar como tipos nacionais diferentes de neoliberalismo. Sem dúvida, não assimilaríamos Trudeau, Merkel e Macron a Trump, Erdogan, Orbán, Salvini e Bolsonaro.
Alguns ainda permanecem fiéis a uma forma de concorrência comercial supostamente leal, sendo que Trump decidiu mudar as regras da concorrência, transformando esta última em guerra comercial a serviço da grandeza dos Estados Unidos (America is Great Again). Alguns invocam ainda, de palavra, os direitos humanos, a divisão de poderes, a tolerância e a igualdade de direitos das pessoas, quando aos outros tudo isto não é cuidado. Alguns pretendem mostrar uma atitude humana frente aos migrantes (alguns muito hipocritamente), quando outros não têm escrúpulos na hora de rejeitá-los e repatriá-los. Portanto, convém diferenciar o modelo neoliberal.
O macronismo não é trumpismo, ainda que só fosse pelas histórias e as estruturas políticas nacionais em que se inscrevem. Macron se apresentou como o baluarte frente ao populismo de extrema direita de Marine Le Pen, como sua aparente antítese. Aparente, porque Macron e Le Pen, se não são pessoas idênticas, na realidade, são perfeitamente complementares. Um se faz de baluarte, quando a outra aceita vestir os hábitos do espantalho, o que permite ao primeiro se apresentar como garantidor das liberdades e dos valores humanos. Se preciso, como ocorre hoje nos preparativos para as eleições europeias, Macron se dedica a alargar artificialmente a suposta diferença entre os partidários da democracia liberal e a democracia iliberal do estilo de Orbán, para que as pessoas acreditem mais facilmente que a União Europeia se situa como tal do lado da democracia liberal.
No entanto, talvez não se tenha percebido suficientemente o estilo populista de Macron, que pode parecer uma simples máscara por parte de um puro produto da elite política e financeira francesa. A denúncia do velho mundo dos partidos, a rejeição ao sistema, a evocação ritual do povo da França, tudo isto era talvez suficientemente superficial, ou inclusive grotesco, mas não por isso deixou de fazer uso do emprego de um método característico, justamente, do novo neoliberalismo, o da recuperação da cólera contra o sistema neoliberal. Não obstante, o macronismo não tinha o espaço político para tocar esta música durante muito tempo. Logo, revelou-se como o que era e o que fazia.
Em linha com os governos franceses precedentes, mas de maneira mais declarada ou menos vergonhosa, Macron associa ao nome de Europa a violência econômica mais crua e mais cínica contra as pessoas assalariadas, aposentadas, funcionárias e assistidas, assim como a violência policial mais sistemática contra as manifestações de oponentes, como se viu, em particular, na Notre-Dame-des-Landes e contra as pessoas migrantes. Todas as manifestações sindicais ou estudantis, inclusive as mais pacíficas, são reprimidas sistematicamente por uma polícia armada até os dentes, cujas novas manobras e técnicas de força são pensadas para aterrorizar aqueles que se manifestam e intimidar o restante da população.
O caso de Macron está entre os mais interessantes para completar o retrato do novo neoliberalismo. Levando mais longe ainda a identificação do Estado com a empresa privada, até o ponto de pretender fazer da França um start-up nation, não para de centralizar o poder em suas mãos e chega, inclusive, a promover uma mudança constitucional que convalidará a fragilização do Parlamento em nome da eficácia.
A diferença com Sarkozy neste ponto salta à vista. Enquanto este último se agarrava a declarações provocadoras, ao mesmo tempo em que alcançava um estilo relaxado no exercício de sua função, Macron pretende devolver todo o brilho e solenidade à função presidencial. Deste modo, conjuga um despotismo de empresa com a subjugação das instituições da democracia representativa em benefício exclusivo do poder executivo.
Falou-se com razão de bonapartismo para lhe caracterizar, não só pela maneira como tomou o poder, acabando com os velhos partidos governamentais, como também por causa de seu desprezo manifesto a todos os contrapoderes. A novidade que introduziu nesta antiga tradição bonapartista é justamente uma verdadeira governança de empresa. O macronismo é um bonapartismo empresarial.
O aspecto autoritário e vertical de seu modo de governo se encaixa perfeitamente no marco de um novo neoliberalismo mais violento e agressivo, imagem e semelhança da guerra travada contra os inimigos da segurança nacional. Por acaso, uma das medidas mais emblemáticas de Macron não foi a inclusão na lei ordinária, em outubro de 2017, de disposições excepcionais do estado de emergência, declarado após os atentados de novembro de 2015?
A aplicação da lei contra a democracia
Não cabe descartar que se produza no Ocidente um momento polanyiano, ou seja, uma solução verdadeiramente fascista, tanto no centro como na periferia, sobretudo caso seja produzida uma nova crise da amplitude da de 2008. O acesso ao poder pela extrema direita na Itália é um toque de advertência suplementar. Enquanto isso, neste momento que prevalece até nova ordem, estamos assistindo a uma exacerbação do neoliberalismo, que conjuga a maior liberdade do capital com ataques cada vez mais profundos, contra a democracia liberal-social, tanto no âmbito econômico e social, como no terreno judicial e policial. É necessário se contentar em retomar o tópico crítico de que o estado de exceção se tornou a regra?
Ao argumento de origem schmittiano do estado de exceção permanente, retomado por Giorgio Agamben, que supõe uma suspensão pura e simples do Estado de direito, devemos opor os fatos observáveis: o novo governo neoliberal se implanta e cristaliza com a promulgação de medidas de guerra econômica e policial. Dado que as crises sociais, econômicas e políticas são permanentes, corresponde à legislação estabelecer as regras válidas de forma permanente, que permitam aos governos responder a elas a todo momento e inclusive preveni-las.
Deste modo, a crise e urgências permitiram o nascimento do que Harcourt denomina um “novo estado de legalidade”, que legaliza o que até agora não eram mais que medidas de emergência ou respostas conjunturais de política econômica e social. Mais que um estado de exceção que opõe regras e exceções, precisamos vê-las com uma transformação progressiva e muito sutil do Estado de direito, que incorporou em sua legislação a situação de dupla guerra econômica e policial para a qual os governos nos conduziram.
Para dizer a verdade, os governantes não estão totalmente desprovidos para legitimar intelectualmente semelhante transformação. A doutrina neoliberal já havia elaborado o princípio desta concepção do Estado de direito. Assim, Hayek subordinava explicitamente o Estado de direito à lei. Segundo ele, a lei não designa qualquer norma, mas, sim, exclusivamente, o tipo de regras de conduta que são aplicáveis a todas as pessoas por igual, incluídas os personagens públicos. O que caracteriza propriamente a lei é, portanto, a universalidade formal, que exclui qualquer forma de exceção.
Por conseguinte, o verdadeiro Estado de direito é o Estado de direito material (materieller Rechtsstaat), que requer da ação do Estado a submissão a uma norma aplicável a todas as pessoas em virtude de seu caráter formal. Não basta que uma ação do Estado seja autorizada pela legalidade vigente, à margem da classe de normas das quais deriva. Em outras palavras, trata-se de criar não um sistema de exceção, mas, ao contrário, um sistema de normas que proíba a exceção. E dado que a guerra econômica e policial não tem fim e reivindica cada vez mais medidas de coerção, o sistema de leis que legalizam as medidas de guerra econômica e policial precisa se estender por força para além de qualquer limitação.
Dizendo de outra forma, já não há freio ao exercício do poder neoliberal por meio da lei, na mesma medida em que a lei se tornou o instrumento privilegiado da luta do neoliberalismo contra a democracia. O Estado de direito não está sendo abolido de fora, mas destruído por dentro para fazer dele uma arma de guerra contra a população e a serviço dos dominantes.
O projeto de lei de Macron sobre a reforma das aposentadorias é, a este respeito, exemplar: em conformidade com a exigência de universalidade formal, seu princípio é que um euro cotado confere exatamente o mesmo direito a todos, seja qual for sua condição social. Em virtude deste princípio, está proibido, portanto, levar em conta a penúria das condições de trabalho no cálculo do valor da aposentadoria. Nesta questão, também fica evidente a diferença entre Sarkozy e Macron. Enquanto o primeiro fez aprovar uma lei após outra, sem que lhe acompanhassem respectivos decretos de aplicação, o segundo se preocupa muito com a aplicação das leis.
Aí está a diferença entre reformar e transformar, tão cara a Macron: a transformação neoliberal da sociedade requer a continuidade da aplicação no tempo e não pode se contentar com os efeitos do anúncio, sem mais. Além disso, este modo de proceder comporta uma vantagem inestimável: uma vez aprovada uma lei, os governos podem escapar de sua parte de responsabilidade sob pretexto de que se limitam a aplicar a lei.
No fundo, o novo neoliberalismo é a continuação do antigo de maneira pior. O marco normativo global que insere indivíduos e instituições dentro de uma lógica de guerra implacável, reforça-se cada vez mais e acaba progressivamente com a capacidade de resistência, desativando o coletivo. Esta natureza antidemocrática do sistema neoliberal explica em grande parte a espiral sem fim da crise e o aceleramento diante de nossos olhos do processo de desdemocratização, pelo qual a democracia se esvazia de sua substância, sem que se suprima formalmente.
Referências
Gentile, Emilio (2004) Fascismo: historia e interpretación. Madri: Alianza.
Harcourt, Bernard E. (2018) The Counterrevolution, How Our Government Went to War against its Own Citizens. Nova York: Basic Books.
Kuttner, Robert (2018) Can democracy survive Global Capitalism? Nova York/Londres: WW. Norton & Company.
Paxton, Robert O. (2009) Anatomía del fascismo. Madri: Capitán Swing.
Roth, Philip (2005) La conjura contra América. Barcelona: Mondadori.
Notas
- Prefácio à tradução em inglês, publicada pela editora Verso, de La pesadilla que no acaba nunca (Gedisa, 2017), obra publicada originalmente por La Découverte, Paris, em 2016.
- Éric Fassin, “Le moment néofasciste du néolibéralisme”, Mediapart, 29 de junho de 2018, https://blogs.mediapart.fr/eric-fassin/blog/290618/le-moment-neofasciste-du-neoliberalisme .
3 Henry Giroux, Neoliberal Fascism and the Echoes of History, Neoliberal Fascism and the Echoes of History, 08/09/2018.
4 Robert O. Paxton, “Le régime de Trump est une ploutocratie”, Le Monde, 6 de março de 2017.