O conceito de felicidade do capitalismo financeiro

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Jessé Souza – Carta Capital – Julho/2018

A guerra dos donos do dinheiro contra a soberania popular promete não dar tréguas e ser levada a cabo sob a forma insidiosa de guerrilha

Na esfera econômica, o capitalismo financeiro, fase atual do capitalismo, implica, além de outras coisas, o aumento da velocidade de valorização do capital, controle inaudito do regime de trabalho e uma impessoalidade no comando das empresas, unido ao foco na rentabilidade de curto prazo.

O foco no curto prazo é o calcanhar de Aquiles de todo o esquema e o que faz com que novas bolhas sejam mera questão de tempo. Na esfera pública, por sua vez, o ataque à soberania popular é direto. Ainda que não se tenha inventado outro mecanismo para legitimar a obediência social no decorrer do tempo, o capital financeiro, por meio da mídia, banaliza, confunde e coloniza os fundamentos normativos da soberania popular.

O apoio ao governo pelos juízes ao mesmo tempo testemunha essa colonização e mostra sua dificuldade, pois toda legitimidade do poder do magistrado também advém da soberania popular.

No curto prazo, esse viés engana, distorce e funciona por algum período. A guerra contra a soberania popular promete ser sem tréguas e levada a cabo sob a forma insidiosa de uma guerra de guerrilha, destruindo crenças compartilhadas e consensos normativos e não em campo aberto. A raiz do neofascismo brasileiro está aqui.

O que comprova a extraordinária resiliência do capitalismo como forma de dominação socioeconômica foi e é a sua capacidade antropofágica de engolir a crítica, distorcer seu conteúdo e cuspi-la depois segundo seus próprios interesses.

A crítica historicamente mais radical ao capitalismo foi a realizada pelo “expressivismo” e pela ideia do ser humano autêntico e expressivo. Essa ideia tem sua fonte histórica mais importante no romantismo e no “expressivismo alemão”, depois universalizada para todos os países do Ocidente.

Ela reflete as críticas de elites artísticas e intelectuais contra o aspecto produtivista e superficial da ideia de individuo econômico do capitalismo liberal clássico: indivíduo visto meramente como produtor disciplinado e consumidor hedonista de mercadorias em um mundo pobre de sentido.

Ao contrário, a lógica do mercado impede a originalidade individual e tende a massificar não só a produção e o consumo, mas qualquer expressão individual autêntica. Ao contrário da transformação do indivíduo em mais uma mercadoria, o “expressivismo” percebe a vida como um desafio de aprendizado do indivíduo acerca de quem ele é e acerca de tudo que o singulariza como biografia. Mais ainda, como tendo a obrigação normativa viver de acordo com essa descoberta.

A “felicidade” individual é definida aqui como uma construção narrativa, contínua e criativa do próprio “self” que obriga a construção de sentidos novos para a vida privada e social.

Nos anos 60 do século passado, essa ideia sai dos círculos das elites artísticas e intelectuais e ganha as grandes massas sob a forma da contracultura cujo suporte social eram as gerações de jovens do segundo pós-guerra. O grande feito do capitalismo financeiro como embuste ideológico foi se apropriar precisamente dessa concepção de felicidade radical e libertadora segundo seus próprios termos.

Isso não se deu de um dia para o outro. Foi uma guerra ideológica incansável até que criatividade, emancipação e originalidade individual fossem repaginados nos termos do capital financeiro.

Originalidade passa a ser um recurso gerencial pré-definido pelos fins de lucro e a ideia de emancipação se transforma na farsa de que todos são agora empresários de si mesmos. Assim, o domínio do capital financeiro não é algo que se contrapõe de fora aos indivíduos, mas, ao contrário, parte de “dentro”, da alma e das aspirações mais profundas do imaginário individual e social. É isso que explica sua incrível eficácia dissimuladora e insidiosa.

Como não houve por parte da esquerda qualquer veleidade de se disputar a hegemonia do imaginário social, entre nós este discurso campeia praticamente sem oposição. Todos se vêm como empresários de si mesmos, pois o patrão se torna abstrato como as dívidas bancárias e não mais de carne e osso.

Assim, a classe média imagina pertencer a elite por poder comprar um par de ações na Bolsa. E a classe trabalhadora se acha a “nova classe média”, restando na base a ralé de novos escravos que sempre foi a casta dos intocáveis entre nós, servindo de mero contraponto negativo para a luta social definida nos termos dos novos ricos.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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