Para economista, recusa do eleito em fazer coalizão pode dificultar a aprovação de reformas – Folha de São Paulo – Ilustríssima, 16 de dezembro de 2018.
Maílson da Nóbrega
Autor avalia que a recusa do presidente eleito em buscar uma coalizão formal com partidos pode dificultar a aprovação de reformas necessárias e, assim, provocar exaustão de sua governabilidade.
A expressiva renovação no Congresso permitiria, na visão otimista de muitos, uma nova forma de relacionamento com o executivo, eliminando o toma-lá-dá-cá de outros tempos. Ocorre que a renovação privou o governo de parlamentares experientes na coordenação de votações relevantes.
Dos novos deputados, 141 deles (27,5% do total) jamais exerceram um cargo público. No partido do novo presidente, o PSL, 45 dos 52 deputados eleitos (87%) são novatos na cena política. O novo paradigma tem muitos riscos.
O presidente eleito tem cumprido a promessa de não negociar cargos, o que agrada muitos segmentos da sociedade. Sua equipe tem sido constituída sem as habituais barganhas políticas, indicando que ele não buscará uma coalizão formal com partidos, que pressupõe o compartilhamento do poder via distribuição de cargos.
Mesmo tendo iniciado encontros com legendas nas últimas semanas, Jair Bolsonaro tem se limitado a pedir apoio para as reformas. Não se fala em cargos.
Dificilmente, contudo, seu programa de governo será aprovado sem uma coalizão, o que pressupõe o compartilhamento do poder e, portanto, de cargos. Seu PSL elegeu pouco mais de 10% da Câmara, mas será preciso obter pelo menos 60% dos votos para aprovar reformas que dependem de emendas constitucionais.
Diz-se que a coalizão será feita com frentes parlamentares como a ruralista, a dos evangélicos e a da segurança, que têm entre 250 e 280 deputados, mas reformas constitucionais exigem o mínimo de 308 votos na Câmara. No Senado, onde necessitará de 49 votos, seus apoiadores serão apenas 15. Além disso, as frentes se unem em torno de temas corporativistas, não necessariamente para apoiar reformas polêmicas.
Coalizões partidárias têm eficácia muito superior. Os partidos têm prerrogativas inexistentes nas frentes. Seus líderes detêm poder de indicar parlamentares para relatar projetos e compor comissões. Eles integram o Colégio de Líderes, que define a pauta de votações de projetos relevantes. São o elo entre os parlamentares e o Executivo, tanto na liberação de emendas orçamentárias quanto em outros assuntos. Exercem função de coordenação ao encaminhar votações.
Negociar com frentes implica o risco de fracasso, embora seja possível aprovar a reforma da Previdência na chamada lua de mel, o início do mandato. O capital político obtido na eleição costuma viabilizar mudanças nos seis primeiros meses após a posse, mas a lista de reformas não se esgotaria.
A reforma tributária, que envolverá difíceis negociações com estados e municípios, demandará emenda constitucional. Outras, como aquelas relacionadas com costumes, podem enfrentar resistências.
Sistemas políticos multipartidários como o brasileiro criaram regras para lidar com processos de decisão coletiva, de modo a assegurar a fidelidade e a coesão da base parlamentar, reduzindo o custo de transação do processo legislativo. Por exemplo, no Reino Unido há o cargo de “whip” (“chicote”, em tradução literal), o parlamentar incumbido da disciplina partidária.
O “chief whip” do partido do governo coordena as votações, tem status de ministro e residência oficial na Downing Street, onde mora o primeiro-ministro. O status e as prerrogativas dessa posição mostram sua relevância para a governabilidade.
Nos dias de votação, o “chief whip” distribui uma lista com os projetos, seguida de símbolos ao lado de cada um deles. Uma linha indica desnecessidade de presença e de voto. Duas linhas significam comparecer e votar com o governo, mas uma justificativa pode dispensar a presença. Três linhas obrigam presença e voto favorável. A desobediência é punida com expulsão do partido. Não é incomum ver parlamentares comparecerem de maca a Westminster nessas ocasiões.
John D. Huber mostrou que a instabilidade da Quarta República Francesa decorreu da deficiente coordenação nas votações parlamentares. Houve 29 governos entre 1946 e 1958, o que levou a Assembleia Nacional a aprovar uma nova Constituição, a da atual Quinta República.
Surgiram arranjos institucionais para assegurar a coesão, a estabilidade e a capacidade decisória do Parlamento, o que decorre de uma Presidência forte e do chamado “parlementarisme rationalisé”. Eleições parlamentares após o pleito presidencial favorecem a escolha de maiorias alinhadas com o governo.
No Brasil, presidentes nunca se elegem com maioria no Congresso. Para o cientista político Sérgio Abranches, criador da expressão “presidencialismo de coalizão”, “a coalizão é uma espécie de acordo prévio pelo qual os partidos se dispõem a apoiar projetos do Executivo, sob determinadas condições, a serem negociadas no momento da discussão e votação de cada um. Nunca é uma delegação de poderes”.
Da capacidade do presidente de gerir a coalizão depende o apoio para aprovar o programa de governo. Ademais, acentua Abranches, “a reeleição dos parlamentares depende fortemente da influência sobre a execução orçamentária e da ocupação de cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões do Executivo”. Sem essas condições, a governabilidade se exaure rapidamente.
A dificuldade de aprovar reformas inibe o cumprimento de promessas de campanha. A consequente queda de popularidade provoca fugas da coalizão, a debandada dos aliados e, no limite, a perda do mandato. O presidencialismo de coalizão é, assim, o arranjo para garantir a coesão e a estabilidade da base parlamentar. Sem isso, a governabilidade pode cair drasticamente.
Bolsonaro parece se imaginar capaz de mudar de maneira radical a forma de negociação política do presidencialismo brasileiro. Governaria com a “força do povo”, o que poderia constranger o Congresso. Abriria mão, assim, da coordenação dos líderes de uma coalizão partidária. Trata-se de estratégia muito arriscada.
O mercado financeiro repousa seu otimismo na expectativa de aprovação de ampla reforma da Previdência e na ortodoxia do superministro da Economia. Empresários e grande parte da classe média apoiam a rejeição do toma-lá-dá-cá, influenciados pela degradada negociação da era petista, que cooptava apoio via corrupção. Imagina-se que negociar cargos seja sinônimo de fisiologismo e corrupção —o que não é necessariamente verdadeiro. Pode haver muitas decepções.
O senso comum diz que as reformas não avançam por “falta de vontade política”, o que abre espaço para figuras enérgicas como Bolsonaro, vistas como dispostas a arrostar e a vencer desafios. Acontece que as reformas dependem da capacidade de articulação política e de gestão de uma coalizão partidária majoritária e coesa.
A negociação com frentes parlamentares, como sinaliza o novo presidente, pode esgarçar as relações com o Congresso e acarretar altos custos de transação. Sem coordenação, será difícil aprovar reformas além da Previdência, impedindo a concretização da esperada recuperação do potencial de crescimento da economia e o cumprimento das promessas de campanha.
A consequência seria a perda gradativa de popularidade e de legitimidade, reduzindo as condições de governabilidade. Esse é o grande risco que correrá o novo presidente caso persista na ideia de desprezar o valor de uma coalizão partidária.
Maílson da Nóbrega, economista, foi ministro da Fazenda (1988-1990) no governo Sarney.