Meritocracia, enriquecimento e ascensão social

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Vivemos em uma sociedade que se transforma com uma rapidez muito grande, os paradigmas antigos estão sendo destruídos e novos estão sendo construídos, gerando novas oportunidades e possibilidades, além de incertezas e instabilidades, diante disso, percebemos uma grande transformação na chamada ascensão social, inaugurada pelo sistema capitalista no pós revolução industrial e que serviu para o aumento da legitimidade do sistema, passa por mudanças substanciais e preocupantes, colocando em xeque grandes conquistas da sociedade.

O conceito de meritocracia advoga a tese de que todos os indivíduos que se esforçarem, estudarem e se dedicarem com afinco e superação serão premiados com boas oportunidades de ascensão social e melhoria de sua qualidade de vida, empregos melhores e garantindo-lhes condições financeiras e sociais positivas de vida e de construção de seu futuro imediato, um preceito muito caro ao ideário dos protestantes que se expandiu por todas as regiões administradas pelos teóricos desta religião.

Em uma sociedade baseada em conhecimento, onde a informação se transformou em um dos ativos mais importantes, a educação ganha relevância e importância central, para sobreviver neste emaranhado de desafios, a capacitação ganha espaço nas famílias e obriga os indivíduos a buscas constantes pelo estudo e qualificação, aqueles que apresentam condições familiares favoráveis largam na frente desta grande empreitada, aqueles que não possuem este ativo fundamental são relegados ao final da fila e, muitas vezes, condenados e uma posição de subalternidade e subserviência na sociedade.

As estruturas sociais e econômicas  devem ser construídas pelos Estados Nacionais objetivando uma melhor qualificação para todos os seus cidadãos, garantindo as condições mínimas para a competição em sociedade, investimentos em educação e saúde são centrais nesta nova sociedade, cidadãos formados e altamente qualificados são ativos importantes que colocam o país na rota dos grandes investimentos da economia internacional e garantem boas condições para todos os grupos sociais.

Nesta nova sociedade os gastos em educação, ou melhor, os investimentos em educação ganham relevância, formar mão de obra qualificada é uma exigência do grande capital, aos Estados Nacionais cabem a construção de um sistema sólido de educação e capacitação dos trabalhadores para a atração dos investimentos, diante das novas demandas do capital, a educação se transforma, cada vez mais, em um negócio rentável e bastante lucrativo, atraindo empresas e fundos de investimentos, transformando pequenas instituições de ensino regionais em grandes conglomerados educacionais com mais de 1 milhão de alunos.

Como a educação ganhou relevância nesta nova sociedade, muitas discussões sobre meritocracia ganharam espaço na academia e no universo jornalístico, alguns defendendo-a como a forma mais evidente de construção de uma sociedade melhor, enquanto outros destacando que não existe meritocracia em uma sociedade desigual e injusta como a brasileira, sendo apenas uma conceito charmoso e elegante para denegrir os esforços, na maioria das vezes insuficientes, daqueles grupos sociais mais frágeis socialmente e menos abastados financeiramente.

Pesquisas recentes divulgadas nos Estados Unidos, concluíram o que muitas pessoas já suspeitavam e poucos diziam em público, nascer em uma família abastada garante mais o seu sucesso futuro do que suas próprias capacidades, segundo a pesquisa, não adianta nascer superdotado, se a pessoa vier de uma família que não forneça o suporte econômico necessário, isso vai impactar diretamente nos seus resultados mais para frente.

Segundo a pesquisa, as “dotações genéticas” (genes que conferem altas capacidades de aprendizado e inteligência) estão distribuídas quase igualmente entre as crianças vindas de famílias de baixa e alta renda, mas o sucesso não, com isso, percebemos a importância e a centralidade da família e das relações sociais na formação dos indivíduos, lembrando uma fala do médium mineiro Francisco Cândido Xavier, ao ser indagado sobre se tinha medo do retorno ao corpo físico, o que o médium prontamente respondia: “o maior temor que tenho é dos pais que me serão destinados”.

O economista Kevin Thom, da Universidade John Hopkins, responsável pela pesquisa, utilizou a base de dados genéticos de uma pesquisa que avaliou o genoma de mais de 1 milhão de pessoas e os relacionou a diferentes potenciais de aprendizado. Essa pesquisa comprovou que há pessoas com genes que conferem altas capacidades de aprendizado, e isso está distribuído em todas as classes sociais.

Ao colocar em números, o economista e seu grupo de pesquisadores descobriram como se dava o sucesso futuro das pessoas com esses genes, apenas 24% delas, se nascidas em famílias pobres conseguiram concluir a faculdade, enquanto que das famílias ricas, 63%, conseguem concluir o ensino superior, com isso, conseguiam se destacar na corrida por bons empregos e postos de trabalho.

Segundo Thom: “Se você não tem os recursos da família, até as crianças brilhantes – aquelas naturalmente dotadas – terão que enfrentar batalhas muito difíceis”. Com isso, a pesquisa nos revela de forma clara e sombria, quantos talentos estão sendo desperdiçados todos os dias na sociedade mundial, gerando perdas individual e coletiva, imagine o quanto de talento e de pessoas talentosas que poderiam responder perguntas e indagações importantes da sociedade internacional, como a descoberta de remédios para inúmeras moléstias e doenças altamente contagiosas, estão sendo castradas em suas potencialidades.

Com estas descobertas o mito da meritocracia perde força, em contrapartida, percebemos que nascer em família abastada e ter boa educação garante mais sucesso do que as habilidades natas dos indivíduos, colocando as relações sociais e familiares em um local de destaque na sociedade, obrigando-nos a rever nossos conceitos mais básicos de família e grupos sociais.

É importante destacar ainda, que muitos bem nascidos da sociedade brasileira ainda relutam em destacar que sua ascensão social social foi facilitada pelas suas condições de nascimento e criação, sempre que indagados destacam seus esforços pessoais e, com isso, querem destacar seus méritos nas conquistas profissionais, será que suas conquistas seriam as mesmas se sua história de vida fosse outra? Estas indagações deveriam ser feitas por todos os grupos sociais que são colocados no topo da pirâmide social e minimizam suas origens destacando seu empenho, seu suar e seu esforço pessoal, empresários bem nascidos que começaram sua trajetória profissional depois de uma formação técnica e intelectual marcada por grandes investimentos feitos por seus pais e familiares, herdaram patrimônios e se colocam como empreendedores capacitados, dinâmicos e inovadores.

Na sociedade contemporânea, a ascensão social está cada vez mais difícil e complexa, os grupos mais favorecidos financeiramente apresentam melhores possibilidades de ver seus filhos ascenderem na escala hierárquica, estas famílias possuem recursos que se bem investidos aumentam o potencial de cada membro familiar, a formação prescinde de cursos e colégios bons e de qualidade, além de recursos para estudos, compras de materiais e viagens culturais, o que faz com que, seus filhos tenham maiores oportunidades de ascenderem profissionalmente e conseguir empregos com melhores salários e em cargos de liderança, com isso, percebemos uma perpetuação das condições de mando na sociedade e os de escalas inferiores acabam perpetuando as condições de vida de seus pais e familiares.

Nas famílias mais abastadas, os filhos entram no mercado de trabalho mais tarde, estudam e aprendem novas habilidades, além de cursos de línguas estrangeiras para se manterem competitivos no mercado de trabalho, encontramos alunos de classe média alta que, como seus pais, estudam e através de concursos públicos se efetivam em cargos de ótima remuneração e de grande status social, chegando na Magistratura, no Ministério Públicos e nas áreas médica e diplomática, são jovens bem nascidos e altamente qualificados, tecnicamente brilhantes mas que ainda não conhecem as durezas da vida e as dificuldades que passam a grande maioria da sociedade para sobreviver, nos grupos mais qualificados os esforços são sempre premiados com presentes caros e de alta qualidade, enquanto nos grupos mais fragilizados seus esforços nem sempre recebem alguma recompensa.

Enquanto nas famílias mais necessitadas, os poucos que conseguem adentrar as portas das universidades, normalmente as privadas, precisam trabalhar muito para pagar suas mensalidades, estudam com grande dificuldade e quando se formam, precisam iniciar suas vidas profissionais mantendo cargas de trabalho extenuantes, muitas vezes trabalhando vários períodos, ganhando pouco e sobrevivendo com bicos variados, com isso, sua capacitação e seus estudos são postergados e sua formação técnica se fragiliza, obrigando-os a novos cursos e dispêndios adicionais.

Outro ponto central a se destacar é que, muitos destes profissionais buscam no magistério seu diploma profissional, na maioria das vezes esta busca se dá muito mais por necessidade e pelo baixo custo financeiro destes cursos do que por vocação, surgindo profissionais sem estímulo, pouco remunerados e com grande defasagem técnica e profissional, perpetuando uma escola público de pouca qualidade, baixa capacidade de melhoria das condições sociais e ascensão profissional.

O termo meritocracia é muito sedutor, remete ao esforço pessoal que cada individuo deveria fazer para conseguir angariar novos espaços dentro da sociedade atual, lembra as bases do protestantismo norte-americano, onde um negro ou cidadão pobres nascidos em condições degradantes conseguem, via estudo e capacitação, galgar novos espaços dentro da sociedade e se transformar em um grande executivo, um secretário de Estado ou um Presidente da República. Estes casos existem e são apregoados pela mídia a todos os momentos, fazem parte de enredos de livros de empreendedorismo e servem para motivar milhões de pessoas em palestras cheias de dinamismo e entusiasmo, mas no final desprovidas de conteúdo e fora da realidade da sociedade.

Na vida real encontramos uma situação muito diferente, embora encontremos inúmeros casos de sucesso, estes representam uma porcentagem irrisória, na verdade a grande maioria reproduz as condições de seus pais, nascidos na pobreza e com baixa capacitação intelecto-cultural, vive-se desta forma e se reproduz uma condição de subserviência, onde os filhos reproduzem a vida dos pais e sucessivamente, é o círculo vicioso da pobreza, que se espalha para todos os rincões da sociedade global e seu crescimento ameaça as bases do capitalismo e da meritocracia.

O mundo não é um conto de fadas, muito pelo contrário, o estudo é a única forma de se estabelecer na sociedade globalizada, a concorrência prescinde de profissionais qualificados e competitivos, estudar, pesquisar e capacitar continuamente exigem esforços constantes dos indivíduos, mas todos estes esforços devem ser precedidos por boas condições físicas, emocionais e espirituais, cabendo ao Estado Moderno dar as condições para que todos os indivíduos possam se capacitar, escolas, creches e universidades, além das condições de trabalho, estas são premissas importantes para garantir que todos os grupos sociais, desde os mais vulneráveis até os mais abastados, tenham condições de competir, afinal, o importante é construir uma sociedade onde todos saiam do mesmo local, garantir a chegada de todos é algo difícil e bastante complexo, uns se dedicam mais, se esforçam mais e conseguem transformar seus esforços em ótimas condições de vida e de reprodução social e econômica, ao Estado Moderno e a sociedade contemporânea cabem que todos os cidadãos larguem do mesmo local e com as mesmas condições, quem ganhará esta corrida é uma outra questão que pouco importa.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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